A Portaria do Ministério do Trabalho nº 1.129, de 13 de outubro de 2017, publicada no Diário Oficial da União de 16.10.2017, dispõe sobre os conceitos de trabalho forçado, jornada exaustiva e condições análogas à de escravo para fins de concessão de seguro-desemprego ao trabalhador que vier a ser resgatado em fiscalização do Ministério do Trabalho, nos termos do art. 2º-C da Lei 7.998/1990, bem como altera dispositivos da Portaria Interministerial MTPS/MMIRDH nº 4, de 11 de maio de 2016, a qual dispõe sobre as regras relativas ao Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores a condições análogas à de escravo.
Um dos aspectos de maior destaque na referida Portaria 1.129/2017 é a conceituação restritiva de “trabalho forçado”, “jornada exaustiva”, “condição degradante” e “condição análoga à de escravo” (art. 1º).
A Portaria 1.129/2017 conceitua, de forma restritiva, “trabalho forçado” como “aquele exercido sem o consentimento por parte do trabalhador e que lhe retire a possibilidade de expressar sua vontade” (art. 1º, inciso I).
Não obstante, na atualidade, considera-se trabalho forçado não só aquele em que o empregado não tenha se oferecido espontaneamente, mas também quando o trabalhador é enganado com falsas promessas de condições de trabalho, havendo coação física ou moral.
Na mesma linha de restrição, a Portaria 1.129/2017 a conceitua a “jornada exaustiva” (art. 1º, inciso II) como “a submissão do trabalhador, contra a sua vontade e com privação do direito de ir e vir, a trabalho fora dos ditames legais aplicáveis a sua categoria” (destaquei).
A hipótese de jornada exaustiva, entretanto, segundo a previsão legal (art. 149 do Código Penal, com redação dada pela Lei 10.803/2003), não exige essa privação da liberdade de locomoção propriamente.
Conforme a Portaria 1.129/2017, “condição degradante” (art. 1º, inciso III) é caracterizada por “atos comissivos de violação dos direitos fundamentais da pessoa do trabalhador, consubstanciados no cerceamento da liberdade de ir e vir, seja por meios morais ou físicos, e que impliquem na privação da sua dignidade” (destaquei).
Como se pode notar, restringe-se o conceito de trabalho em condição degradante, exigindo, sempre, o cerceamento da liberdade de locomoção do trabalhador.
O argumento que prevaleceu, ao que tudo indica, pode ser no sentido de se buscar conferir maior segurança jurídica a respeito do tema.
Entretanto, o conceito contemporâneo de trabalho em condições análogas à de escravo, inclusive em conformidade com a atual previsão do art. 149 do Código Penal, com redação dada pela Lei 10.803/2003, por ser mais amplo, não faz essa exigência restritiva.
No sentido exposto, consoante a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal:
“Penal. Redução a condição análoga a de escravo. Escravidão moderna. Desnecessidade de coação direta contra a liberdade de ir e vir. Denúncia recebida. Para configuração do crime do art. 149 do Código Penal, não é necessário que se prove a coação física da liberdade de ir e vir ou mesmo o cerceamento da liberdade de locomoção, bastando a submissão da vítima ‘a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva’ ou ‘a condições degradantes de trabalho’, condutas alternativas previstas no tipo penal. A ‘escravidão moderna’ é mais sutil do que a do século XIX e o cerceamento da liberdade pode decorrer de diversos constrangimentos econômicos e não necessariamente físicos. Priva-se alguém de sua liberdade e de sua dignidade tratando-o como coisa e não como pessoa humana, o que pode ser feito não só mediante coação, mas também pela violação intensa e persistente de seus direitos básicos, inclusive do direito ao trabalho digno. A violação do direito ao trabalho digno impacta a capacidade da vítima de realizar escolhas segundo a sua livre determinação. Isso também significa ‘reduzir alguém a condição análoga à de escravo’. Não é qualquer violação dos direitos trabalhistas que configura trabalho escravo. Se a violação aos direitos do trabalho é intensa e persistente, se atinge níveis gritantes e se os trabalhadores são submetidos a trabalhos forçados, jornadas exaustivas ou a condições degradantes de trabalho, é possível, em tese, o enquadramento no crime do art. 149 do Código Penal, pois os trabalhadores estão recebendo o tratamento análogo ao de escravos, sendo privados de sua liberdade e de sua dignidade. Denúncia recebida pela presença dos requisitos legais” (STF, Pleno, Inq 3.412/AL, Rel. Min. Marco Aurélio, Red. para acordão Min. Rosa Weber, m.v., DJe 12.11.2012, destaquei).
“Recurso extraordinário. Constitucional. Penal. Processual Penal. Competência. Redução a condição análoga à de escravo. Conduta tipificada no art. 149 do Código Penal. Crime contra a organização do trabalho. Competência da Justiça Federal. Artigo 109, inciso VI, da Constituição Federal. Conhecimento e provimento do recurso. 1. O bem jurídico objeto de tutela pelo art. 149 do Código Penal vai além da liberdade individual, já que a prática da conduta em questão acaba por vilipendiar outros bens jurídicos protegidos constitucionalmente como a dignidade da pessoa humana, os direitos trabalhistas e previdenciários, indistintamente considerados. 2. A referida conduta acaba por frustrar os direitos assegurados pela lei trabalhista, atingindo, sobremodo, a organização do trabalho, que visa exatamente a consubstanciar o sistema social trazido pela Constituição Federal em seus arts. 7º e 8º, em conjunto com os postulados do art. 5º, cujo escopo, evidentemente, é proteger o trabalhador em todos os sentidos, evitando a usurpação de sua força de trabalho de forma vil. 3. É dever do Estado (lato sensu) proteger a atividade laboral do trabalhador por meio de sua organização social e trabalhista, bem como zelar pelo respeito à dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, inciso III). 4. A conjugação harmoniosa dessas circunstâncias se mostra hábil para atrair para a competência da Justiça Federal (CF, art. 109, inciso VI) o processamento e o julgamento do feito. 5. Recurso extraordinário do qual se conhece e ao qual se dá provimento” (STF, Pleno, RE 459.510/MT, Rel. p/ acórdão: Min. Dias Toffoli, DJe 12.04.2016, destaquei).
Desse modo, na atualidade, entende-se que o trabalho degradante é caracterizado por condições precárias de labor, sem a observância das normas mínimas de segurança, higiene e saúde do trabalho, em afronta à dignidade humana.
Ainda segundo a mencionada Portaria 1.129/2017, “condição análoga à de escravo” (art. 1º, inciso IV) é considerada:
“a) a submissão do trabalhador a trabalho exigido sob ameaça de punição, com uso de coação, realizado de maneira involuntária;
b) o cerceamento do uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto, caracterizando isolamento geográfico;
c) a manutenção de segurança armada com o fim de reter o trabalhador no local de trabalho em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto;
d) a retenção de documentação pessoal do trabalhador, com o fim de reter o trabalhador no local de trabalho”.
Não obstante, conforme o art. 149 do Código Penal, com redação dada pela Lei 10.803/2003, que tipifica o crime de “redução a condição análoga à de escravo”:
“Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhados forçados ou a jornada excessiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto.
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos, e multa, além da pena correspondente à violência.
§ 1º Nas mesmas penas incorre quem:
I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho;
II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho”.
Logo, de acordo com a previsão legal, a “redução a condição análoga à de escravo”, ou seja, o trabalho em condições análogas à de escravo, é gênero que engloba as seguintes espécies ou modalidades:
a) trabalho forçado;
b) jornada exaustiva;
c) condição degradante de trabalho;
d) restrição da locomoção em razão de dívida;
e) cerceamento do uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho;
f) manutenção de vigilância ostensiva no local de trabalho;
g) apoderar-se de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.
A redução de trabalhador a condição análoga à de escravo configura grave violação à dignidade da pessoa humana, prevista como fundamento do Estado Democrático de Direito (art. 1º, inciso III, da Constituição da República), o que resulta em manifesta contrariedade ao chamado trabalho decente, previsto e exigido também na esfera internacional[1].
Portanto, em respeito à hierarquia das normas no sistema jurídico e mesmo ao princípio da legalidade (art. 5º, inciso II, da Constituição Federal de 1988), não caberia a ato de natureza administrativa, como Portaria ministerial, versar sobre matéria reservada à lei (art. 22, inciso I, da Constituição da República), nem restringir o alcance e o sentido de determinações de ordem legal.
[1] Cf. GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Curso de direito do trabalho. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 200-202.
Gustavo Filipe Barbosa Garcia
é professor Universitário e livre-docente pela Faculdade de Direito da USP.
Fonte: Genjuridico.com.br/
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