Dentre as disposições constantes do CPC/15, o tema relativo à uniformização da jurisprudência – mediante o emprego de diferentes mecanismos – segue como um dos mais discutidos pela doutrina e, em alguma medida, pelos tribunais. Esta Coluna, para ilustrar, dedicou pelo menos três artigos a tópicos relacionados a esse assunto e, nesta oportunidade, faz nova investida. Considerando o tempo de vigência do diploma, ao que se pode somar a circunstância de que a busca por uma jurisprudência uniforme não é exatamente nova, a forma de abordagem é aquela que resulta da indagação contida no título: será crível que, ao menos no médio prazo, consigamos ter uma jurisprudência apta a preservar valores como isonomia, previsibilidade, segurança e confiança?
Sem pretender engrossar o coro dos pessimistas ou dos críticos do novo diploma (até porque o problema está longe de ter sido criado pelo novo diploma ou dele ser exclusivo), sou particularmente cético em relação ao futuro, nesse particular. Que as palavras que seguem não sejam lidas e interpretadas como derrotistas ou destrutivas. Mas, se queremos mudar a realidade, o primeiro passo é um diagnóstico tão exato quanto possível, ainda que eventualmente desagradável. Não se trata de criticar este ou aquele partícipe do sistema: não é possível e nem seria justo encontrar um responsável e, de todo modo, responsáveis somos todos nós, profissionais do Direito e também cidadãos e jurisdicionados. Trata-se de identificar objetivamente as razões pelas quais temos, afinal de contas, tanta dificuldade em uniformizar jurisprudência, bastando lembrar – como demonstração eloquente dessa premissa – a de que o instituto que fora previsto para essa finalidade no CPC/73 passou praticamente incólume pela experiência dos tribunais locais (de Justiça e Federais).
Sendo a Constituição e as leis federais as mais relevantes, e estando sua aplicação a cargo de diferentes órgãos – que atuam em contextos culturais, sociais e econômicos às vezes diversos – é compreensível que a interpretação de tais dispositivos tenda a ser pouco uniforme. Não se trata apenas de tribunais de diferentes unidades federadas a aplicar a mesma lei. Dentro do Judiciário, a lei federal é aplicada pela Justiça comum estadual e federal; e, embora com algumas ressalvas, é base também de Justiças especializadas, como a do Trabalho e a Eleitoral. Todos esses órgãos, forçoso reconhecer, têm composições diversas e, principalmente, lidam com conflitos e realidades distintas. Cada um deles, portanto, tende a ter sua própria visão do mundo e do Direito.
Fora do Judiciário, a lei federal – novamente ela – é a base normativa a ser considerada por diferentes órgãos administrativos – dentre os quais as agências reguladoras – que, para voltar ao início, estão sujeitos a controle por diferentes órgãos jurisdicionais. Então, nesse contexto, é realmente difícil que um órgão – no caso da CF o STF e no caso da lei federal o STJ (sem falar nos Tribunais de Justiça e Regionais Federais, no contexto do assim chamado IRDR) – seja capaz de uniformizar a interpretação das normas federais, num contexto tão complexo e volumoso de decisões. Não é à toa, portanto, que o STF – tanto mais porque sobrecarregado com processos de competência originária que deveriam ser exceção para essa Corte – não dê conta de seu estoque de recursos com repercussão geral reconhecida. Não é à toa, também, que a jurisprudência tenda a restringir – muitas vezes sem argumentos plausíveis ou leais – o conhecimento de recursos. Mas, isso não impede que o problema remanesça: seguimos lutando contra a falta de uniformidade na interpretação das normas federais.
Outra dificuldade está no relativo insucesso da tutela coletiva, em sentido amplo, especialmente se considerada aquela voltada aos assim denominados interesses individuais homogêneos. Conceitualmente falando, aquela forma de tutela – na medida em que possa ter eficácia ultra partes e ser postulada por representantes adequados – teria maior capacidade de produzir resultados uniformes. Assim se passa no caso do controle de constitucionalidade, quando a decisão produza eficácia erga omnes. Contudo, o sistema brasileiro – por diferentes razões que aqui não seria possível examinar – caminhou para outro lado: acabou por preferir uma técnica de gerenciamento de causas repetidas (que trazem as mesmas questões de direito) que parte do julgamento de processos individuais – eles sim representativos da controvérsia com dimensões ultra partes – para estabelecer eficácia expandida a todos quantos estejam na mesma situação. Mas, esse mecanismo – que já constava do art. 543 do CPC/73 e que foi incrementado no diploma vigente – tem consideráveis problemas, com riscos à tempestividade da tutela (por conta do sobrestamento de causas) e ao contraditório (pelo déficit de representatividade das partes que atuam nos recursos eleitos como paradigmas), por exemplo.
Finalmente, é preciso reconhecer que a dificuldade de uniformizar também reside na resistência de parte dos magistrados, fundados ou não no argumento da independência do julgador, de seguir o que, bem ou mal, tenha sido objeto de uniformização pelas instâncias competentes. Mais uma vez sem pretender encontrar culpados (porque todos somos responsáveis pelo estado de coisas em que nos encontramos), é fato que não raramente falta coerência interna dentro dos próprios órgãos encarregados de uniformizar, de tal sorte que alguns de seus membros simplesmente se recusam a seguir o que o Colegiado deliberou. Isso é certo? Isso é errado? Isso tem justificativa? São perguntas difíceis de responder, mas o fato é que, objetivamente, essa resistência interna mina um sistema que pretende oferecer jurisprudência nos moldes do art. 926 do CPC/15.
E o problema, naturalmente, não é apenas dos órgãos uniformizadores: é preciso que os órgãos sujeitos à uniformização a aceitem. É assim que funciona na Democracia e conviria franqueza e autocrítica para reconhecer que o volume de litigiosidade não decorre apenas do número de demandas ou de recursos que as partes aforam ou interpõem, mas também da circunstância de que o entendimento firmado pelos órgãos superiores e competentes não é observada. Nesse ponto, não é possível qualificar a parte que insiste em demandar ou recorrer contra tese firmada por tribunal uniformizador de litigante de má-fé; e, paradoxalmente, qualificar o magistrado que ignora a uniformização firmada pela instância competente de juiz independente. Os dois comportamentos conspiram contra a estabilidade do sistema.
Os três obstáculos aqui identificados, que certamente não esgotam o problema e para os quais não se entrevê solução próxima, parecem mesmo justificar uma certa dose de ceticismo. Sem vencê-los ou ao menos atenuá-los, será efetivamente difícil vislumbrar um futuro de jurisprudência uniforme, coerente e íntegra, apta a gerar previsibilidade, segurança e confiança. Portanto, que todos assumamos nossas responsabilidades e, no limite de nossas competências e possibilidades, tentemos superar essas e outras dificuldades, com humildade, trabalho e serenidade.
por Flávio Luiz Yarshell - Advogado. Professor Titular do Departamento de Direito Processual da Faculdade de Direito da Universidade São Paulo.
Fonte: Carta Forense
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