“Isso é submissão ao Senado”, disse o ministro Fachin à ministra Cármen Lúcia na sessão de ontem. O Supremo se submeteu ao Senado?
A intervenção de Fachin pode ser lida em dois níveis.
O primeiro diz respeito ao mérito da questão constitucional em jogo.
Os problemas começam quando saímos da hipótese expressa. E se a cautelar em jogo não for prisão, mas outra medida restritiva – recolhimento noturno, no caso de Aécio? E se essa medida atrapalhar o exercício do mandato? A Constituição não utiliza essas palavras, mas essa ausência não tem um significado óbvio. Como interpretar o silêncio – sera restrição implícita ou permisão implícita?
Para uma maioria de Senadores, o parlamentar é imune a qualquer medida exceto prisão em caso de flagrante, ainda que a medida em jogo seja considerada menos grave que a prisão. Do outro lado, Fachin, vencido no Supremo, entendia que o Congresso só poderia rever a aplicação de prisão cautelar, como expressamente previsto na Constituição – e só.
Entre as posições do Senado e de Fachin, a visão da frágil maioria no Supremo considerou que, ao tratar da medida mais grave (a prisão em caso de flagrante), a Constituição teria incluído implicitamente todas as outras medidas menos graves permitidas na legislação, como o recolhimento noturno aplicado a Aécio. Ou seja, a maioria afirmou uma “permissão limitada” para o tribunal: cautelares menos graves são possíveis, mas podem ser suspensas pelo Senado.
Essa posição não caracteriza automaticamente “submissão” da corte. A maioria de ministros ampliou a incidência de uma “submissão” já prevista na constituição para o caso da prisão em flagrante. Em princípio, a última palavra do Senado em casos assim, portanto, não foi uma invenção do momento, mas dos constituintes.
A ampliação dessa última palavra para outras hipóteses é, claro, genuinamente controversa. Mas uma leitura restritiva dessa imunidade também seria. Juristas vem se dividindo sobre esse tema, sem coloração partidária clara na divisão, desde os casos dos parlamentares Delcidio do Amaral e Eduardo Cunha. E, no fim das contas, o trabalho do Supremo é (ou deveria ser) decidir questões controversas.
Por trás de algumas reações fortes a essa visão des-dramatizada da questão está a ideia de que, sendo Supremo, toda decisão do tribunal deve permanecer intocada e intocável (exceto, é claro, se for (re)tocada pelos próprios ministros, sempre que, como o Ministro Marco Aurélio na sessão de ontem, entenderem que não podemos lhes cobrar coerência).
Nos manuais dos juristas, proposições como “a última palavra é do Supremo” soam bem – incontroversas e inofensivas. Sua vida real, porem, é muito mais acidentada.
Nem sempre quem quer ter a última palavra consegue ter a última palavra. Como lembra Felipe Recondo, o Congresso recentemente aprovou uma emenda à constitucional autorizando a “vaquejada” que o Supremo havia proibido. O Supremo aplicou o texto constitucional que existia; o Congresso alterou esse texto. Tudo dentro das regras.
Além disso, na política, nem sempre ganha quem decide por último. Por exemplo, é difícil imaginar que os senadores estão animados com a possibilidade de ter que rever várias cautelares, aplicadas a vários senadores investigados por corrupção, na véspera das eleições de 2018, em que corrupção será um tema central. Pode ser até que, diante de novas cautelares, alguns deles voltem a dizer que “decisão do Supremo não se discute, mas se cumpre” para se eximir, diante do eleitorado e de seus colegas, da responsabilidade de uma escolha trágica entre duas perdas políticas.
De outro lado, e seguindo o mesmo raciocínio, livres da “última palavra” sobre as cautelares, é possível que aos menos alguns de seus ministros se sintam mais incentivados a aplicá-las, deixando para os Senadores a tarefa de aparecer em rede nacional protegendo seus colegas. Mesmo perdendo a aparente batalha, o Supremo pode ter se posicionado melhor para a guerra. Mas a profissão de fé doutrinária na “última palavra” não capta essas dinâmicas.
A segunda leitura da “submissão” criticada por Fachin é mais grave. Diz respeito à forma de produção da decisão: a decisão da maioria neste caso foi tomada, em parte, por uma dinâmica específica de poder do Senado sobre o Supremo?
No caso, não houve até aqui qualquer ataque direto e explicito por parte do Senado. Contudo, a mera ameaça de ataque futuro pode pode produzir efeitos, sem que o ataque nunca de fato chegue a ocorrer. Na imprensa, não faltaram ameaças desse tipo nos últimos dias, de reformas constitucionais e impeachment de ministros do Supremo, passando pela desobediência. Nesse cenário, a crítica de Fachin pode ter sido de que essa decisão agora, neste contexto, da forma como está sendo tomada foi produzida mais por essas ameaças, do que pela constituição.
Apontar para os eventuais bons argumentos da maioria vencedora não enfraquece essa crítica. Ela destaca o Supremo como um tribunal de conjuntura no pior sentido: a mesma questão sera decidida de maneira radicalmente diferente dependendo de como os ministros tomam o pulso politico do país no curtíssimo prazo.
Para além das ameaças do Senado, a frágil e confusa maioria de 6×5 neste caso reforça essa leitura. Se ainda estivesse vivo, e mantivesse sua posição no caso Cunha, Teori Zavascki teria virado o placar. Mesmo na composição atual, a frágil maioria, combinada à insistência de alguns ministros em manter aberta a porta para “situações excepcionais”, mostra que a conjuntura ainda poderá produzir resultados distintos sobre essa mesma questão no futuro próximo.
Se essa imagem do tribunal de conjuntura não tivesse base na realidade, talvez fosse mais fácil separar as duas dimensões da crítica de Fachin – apontar para os bons argumentos em cada lado e defender a posição da maioria como uma leitura da constituição, e não das últimas notícias da política. Infelizmente, não é o caso.
por Diego Werneck Arguelhes – Professor da FGV Direito Rio
Fonte: Jota
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