terça-feira, 17 de outubro de 2017

Entendendo a Filosofia do Direito – As correntes da filosofia do direito (1/4): O positivismo jurídico

No artigo anterior (clique aqui), estudamos a tese da separação x tese da conexão entre direito e moral. Vimos basicamente que o positivismo abraça a tese da separação, enquanto o jusnaturalismo adota a tese da conexão ou da vinculação entre direito e moral.

Neste e nos próximos 3 artigos, passaremos em revista, sempre de forma objetiva e baseada nos principais autores modernos, as principais características de cada corrente da filosofia do direito. Veremos o positivismo jurídico, o jusnaturalismo, o realismo ou pragmatismo jurídico e, por fim, o neoconstitucionalismo, do qual já se disse ter partido de um modelo normativo (o constitucionalismo) e se transformado em uma teoria do direito.[i]

O positivismo jurídico é, dentre as correntes da filosofia do direito, aquela que hoje em dia mais corresponde ao nosso senso comum: para essa corrente, a lei ou o direito é algo concreto, que pode ser identificado de forma objetiva no meio social. Geralmente, o positivismo associa o direito às leis e normas emanadas da autoridade, e isso se vê particularmente em um precursor do positivismo jurídico que é John Austin, com o chamado positivismo imperativista.[ii] Outros autores irão elaborar versões mais sofisticadas do positivismo, como Hans Kelsen e H.L.A. Hart. Kelsen trabalha com a ideia de escalonamento da ordem jurídica, em que a validade da norma é conferida por uma norma superior, todo o sistema repousando na chamada “norma fundamental” ou Grundnorm, que para Kelsen é um pressuposto filosófico.[iii] Para Hart, o sistema repousa na “norma de reconhecimento”, uma norma de natureza sociológica ou convencional que nos diz quem está autorizado em dada sociedade a produzir o direito.[iv]

Mas, independentemente da versão adotada do positivismo jurídico, fala-se que essa corrente da filosofia do direito baseia-se em duas teses fundamentais: a tese da separação entre direito e moral e a tese das fontes sociais do direito (na literatura anglo-saxã, a separation thesis e a social thesis); já vimos no artigo anterior o que significa a tese da separação e, quanto à tese das fontes sociais, ela remete à ideia acima exposta, de que o direito emana de fontes sociais, como o Estado, e pode ser objetivamente delimitado.

Outra questão interessante envolvendo o positivismo jurídico é se ele alberga um “dever de obediência” às normas jurídicas. Alguns autores entendem que a resposta é negativa. Para Hart, por exemplo, com base na estrita separação entre direito e moral, poderíamos concluir diante da lei extremamente injusta: “isto é lei, mas é muito injusta para ser aplicada.” 

Norberto Bobbio, por sua vez, entende que o positivismo jurídico pode ser de 3 tipos: i) um certo modo de abordar o estudo do direito; ii) uma certa teoria do direito e iii) uma certa ideologia do direito.[v] É no sentido de ideologia que o positivismo incluiria o dever de obediência, e Bobbio o rejeita nessa modalidade. Contudo, alguns autores modernos como Jeremy Waldron irão defender justamente que o positivismo não pode ser apenas uma teoria epistemológica do direito, mas deve incluir um elemento propriamente normativo, de que o direito “deve ser” mesmo identificado à lei, pois é melhor que seja assim: é o chamado positivismo ético ou normativo.[vi]

De se dizer ainda que o positivismo jurídico tem sido muito criticado e às vezes de forma imprecisa do ponto de vista teórico, como adverte Dimitri Dimoulis ao falar de “positivismo caricaturado”.[vii]

Por fim, aspecto extremamente importante é a relação entre positivismo e democracia. O positivismo alberga a preocupação com a democracia, de que o juiz atenha-se à lei, para não extrapolar suas funções e invadir a esfera do legislador. O jusnaturalismo teme a justo título que esse juiz positivista pratique injustiças no caso concreto, sob pretexto de aplicar a lei. Defende o juiz que, confrontado com “leis nazistas”, preferiria obedecer a uma moral humana. Mas Hoerster adverte contra o juiz que, confrontado com leis democráticas, como aquelas da República de Weimar, prefira obedecer a uma moral nazista.[viii]


[i] GARCÍA FIGUEROA, Alfonso. Ser o no ser normativo: um dilema para el positivismo jurídico. In: DIMOULIS, Dimitri ; DUARTE, Écio Oto (Coord.). Teoria do direito neoconstitucional: superação ou reconstrução do positivismo jurídico? São Paulo: Editora Método, 2008, p. 79-101.
[ii] AUSTIN, John. The Province of Jurisprudence Determined. Cambridge: Cambridge University Press, 1995.
[iii] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1997, 427 p.
[iv] HART, H.L.A. O conceito de direito. São Paulo: Martins Fontes, 2012, 399 p.  Alexy parece acreditar que há boas razões para não se conceber a norma fundamental de maneira abstrata e, nesse caso, segundo ele, só restaria fundamentar a norma fundamental por meio de um conceito de validade sociológico ou ético. (ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 61, nota de rodapé de nº 32)
[v] BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone Editora, 2006, p. 131-134.
[vi] WALDRON, Jeremy. Law and Disagreement. Oxford: Oxford University Press, 1999. Leitor Kindle, pp. 166/167.
[vii] DIMOULIS, Dimitri. Positivismo jurídico: introdução a uma teoria do direito e defesa do pragmatismo jurídico-político. São Paulo: Método, 2006, p. 53.
[viii] Apud ALEXY, Robert. Conceito e validade do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 65.

Paulo Gustavo Guedes Fontes
Doutor em Direito do Estado. Mestre em Direito Público. Desembargador do Tribunal Regional Federal da 3ª Região. Professor de Direito Constitucional.

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