terça-feira, 17 de outubro de 2017

Da teoria dos atos próprios: o abuso de direito

Em que consiste a teoria dos atos próprios? Essa é uma pergunta relevante que me tem sido constantemente apresentada em minha vida de docência. O presente artigo traz rápidas ideias para quem não tem tempo a perder e precisa se inteirar rapidamente do tema.

São atos praticados com abuso de direito, chamados ainda de atos emulativos. No Código CIvil de 1.916 se discutia sua natureza jurídica. O Código atual, de modo categórico, afirma que são atos ilícitos (artigo 187).

Vale destacar que esses atos próprios, como não poderia deixar de ser, são contrários ao princípio da boa-fé objetiva – dever geral de probidade que nos é imposto pelo artigo 422 CC, tendo o legislador se valido da técnica de estabelecer o instituto como uma cláusula geral. Cada Magistrado, em cada caso concreto, avalia, se a postura cumpre, ou não o princípio da boa-fé objetiva (o que, logicamente, pressupõe motivação adequada).

Esses atos em abuso de direito, pelo óbvio, implicam em desatendimento do princípio geral de boa-fé objetiva. Há algumas situações que tem sido padronizadas pela doutrina e pela jurisprudência, como evidenciadoras desses abusos de direito.

São elas a vedação de comportamentos contraditórios (venire contra factum proprium), a vedação da surpresa por conduta inesperada (tu quoque), o dever de mitigar as próprias perdas (Enunciado nº 169 das Jornadas de Direito Civil – conhecido pelo bracardo anglo-saxão – duty to mitigate the loss), a substancial performance (adimplemento substancial que evidencia abuso do direito do credor em retomar a coisa quando parcelas substanciais do contrato já foram quitadas) e a supressio e surrectio (na supressio abandona-se a posição jurídica a que se tem direito, por razoável lapso de tempo, mas após, para causar prejuízo ao outro, exercer o direito abusivamente – se um perde por supressio o direito nessas condições a outra parte prejudicada passa ter uma direito nascido, surreição, no sentido contrário).

Sobre o venire contra factum proprium, impende ponderar que implica em verdadeiro desdobramento do princípio da confiança, não se admitindo que, após se gerar certas expectativas na outra parte, se altere o comportamento.

Valem as seguintes ponderações doutrinárias:

“Pois bem, a proibição de comportamento contraditório (nemo potest venire contra factum proprium) é modalidade de abuso de direito que surge da violação do princípio da confiança decorrente da função integrativa da boa fé objetiva (CC, art. 422). (…) a vedação de comportamento contraditório obsta que alguém possa contradizer seu próprio comportamento, após ter produzido em outra pessoa, uma determinada expectativa. É, pois, a proibição da inesperada mudança de comportamento (vedação da incoerência), contradizendo uma conduta anterior adotada pela mesma pessoa, frustrando as expectativas de terceiros. Enfim, é a consagração de que ninguém pode se opor a fato a que ele próprio deu causa.” (DIREITO CIVIL TEORIA GERAL – Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, 8ª Edição, 2ª Tiragem, Editora Lumem Juris)

A vedação do comportamento contraditório tem ganho tal relevância que, inclusive, tem se espraiado para outras esferas do direito. A jurisprudência dos Tribunais Superiores tem reconhecido tal dever até mesmo no processo penal, impedindo seja acusação (veja-se o exemplo dado por Fernando Capez, em que um promotor pede absolvição – o Juiz absolve e, logo em seguida, a Promotoria apela da sentença buscando a condenação), seja defesa (réu preso arrolando testemunhas na China, no Zaire e na Bósnia Herzegovina e reclamando de excesso de prazo no encerramento da instrução), de se portarem em desacordo com o venire contra factum proprium.

Sobre o tema:

HABEAS CORPUS. FORMAÇÃO DE QUADRILHA. ALEGAÇÃO DE EXCESSO DE PRAZO. RÉU FORAGIDO. INEXISTÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO. PROCESSO NA FASE DE ALEGAÇÕES FINAIS.

1 – À luz do disposto no art. 105 da Constituição Federal, esta Corte de Justiça não vem mais admitindo a utilização do habeas corpus como substituto de recurso ordinário, recurso especial, ou revisão criminal, sob pena de se frustrar sua celeridade e desvirtuar a essência desse instrumento constitucional.

2 – Uma vez constatada a existência de ilegalidade flagrante, nada obsta que seja deferida ordem de ofício, como forma de coarctar o constrangimento ilegal, situação inocorrente na espécie.

3 – Improcede a alegação de excesso de prazo na formação da culpa, pois o processo, além de complexo, envolve vários réus, circunstância que exigiu o desmembramento dos autos e a expedição de cartas precatórias, encontrando-se o feito já na fase de alegações finais (Súmula nº 52 do STJ).

4 – Ademais, o paciente encontra-se foragido. O processo penal não se compraz com comportamentos contraditórios (“venire contra factum proprium”). O réu que  rejeita submeter-se à determinação judicial de prisão cautelar não pode valer-se da alegação de excesso de prazo.

5 – Ordem não conhecida.

No mesmo sentido:

STJ – HABEAS CORPUS HC 212490 PB 2011/0157347-8 (STJ) Data de publicação: 18/02/2014 Ementa: PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. CRIMES DE RESPONSABILIDADE DE PREFEITO. (1) IMPETRAÇÃO SUBSTITUTIVA DE RECURSO ORDINÁRIO. IMPROPRIEDADE DA VIA ELEITA. (2) PACIENTE QUE FOI PREFEITO NO PERÍODO DE 01/01/1993 a 31/12/1996. TÉRMINO DO MANDADO. OFERECIMENTO DE DENÚNCIA APÓS TAL INTERREGNO, MAS, EM INSTANTE QUE JÁ HAVIA OBTIDO UM SEGUNDO MANDADO (01/01/2005 a 31/12/2008). DECLINATÓRIA DE COMPETÊNCIA. PRAZO PARA DEFESA PRELIMINAR. TRANSCURSO IN ALBIS. APRESENTAÇÃO DE PETIÇÃO COM PROCURAÇÃO, EM CUJA QUALIFICAÇÃO CONSTOU QUE SERIA PREFEITO. INTERROGATÓRIO, NA QUALIFICAÇÃO, SILÊNCIO QUANTO AO CARGO OCUPADO. BOA-FÉ OBJETIVA. VEDAÇÃO DO VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM. CONSTRANGIMENTO ILEGAL. AUSÊNCIA. (3) ORDEM NÃO CONHECIDA. 1. No contexto de racionalização do emprego do habeas corpus, é inviável o seu emprego como sucedâneo de recurso ordinário. 2. O princípio da boa-fé objetiva ecoa por todo o ordenamento jurídico, não se esgotando no campo do Direito Privado, no qual, originariamente, deita raízes. Dentre os seus subprincípios, destaca-se da vedação do venire contra factum proprium (proibição de comportamentos contraditórios). Assim, diante de uma conduta sinuosa, não é dado reconhecer-se a nulidade. Na espécie, o paciente, em tese, teria perpetrado crimes do Decreto-Lei 201 /1967, no período em que prefeito municipal, de 01/01/1993 a 31/12/1996. Posteriormente, deixou o cargo, não tendo o Ministério Público tomado ciência de nova diplomação do paciente para o mesmo cargo. Foi oferecida denúncia perante o Tribunal Regional Federal, com fulcro no então vigente § 2º do artigo 84 do Código de Processo Penal . Com a declaração de sua inconstitucionalidade, o aludido Sodalício declinou da competência em favor do juízo de primeiro grau. Intimado para apresentar defesa preliminar, o paciente quedou silente. Deduziu, todavia, petição, acompanhada de procuração, na qual teria constado sua qualificação como prefeito municipal. No interrogatório, ao ser qualificado, omitiu tal condição, seguindo-se o processo. Nesse contexto, não se mostra coerente apontar o Poder Judiciário como descuidado quando, no interrogatório, o paciente atuou de maneira contraditória daquela operada ao fornecer a procuração ad judicia. De mais a mais, entendendo a Defesa que haveria nulidade no interrogatório deveria ter, no termo, protestado pela incompetência do juízo de primeiro grau. Na atualidade, o paciente não é mais ocupante de cargo que determinaria o envio dos autos ao segundo grau, inexistindo razão para se declarar a nulidade de qualquer ato processual, sendo que se, alguma irregularidade ocorreu, tributa-se ao comportamento desleal da Defesa. 3. Ordem não conhecida..

Como deriva do princípio da confiança, que permeia o direito público, não tem sido incomum encontrar-se julgados no âmbito do direito tributário e do direito administrativo versando sobre a questão da incidência do venire contra factum proprium igualmente nessas plagas. Igualmente se cuida de princípio acolhido no processo do trabalho.

No âmbito do direito internacional tem sido igualmente vedado o comportamento contraditório entre países através da conhecida cláusula de Stoppel ou Estoppel, como queiram – em doutrina se encontram as duas grafias (lembra-se comumente o exemplo do caso da refinaria da Petrobrás que foi apropriada pelo Governo da Bolívia através de sua abusiva nacionalização, promovida por Evo Morales, que lesou a estatal brasileira, dantes iludida a lá investir).

O tu quoque é parte de famosa expressão latina “tu quoque Brutus filie mi” – Até tu, Brutus, meu filho ? Referência literária a uma suposta frase dita pelo ditador romano Júlio César ao ser assassinado por um grupo que incluia seu enteado, no SPQR – Senatus Populusque Quorum Romanum.

Mais não há para ser dito! É uma ideia que revela surpresa, que caracteriza indignidade do comportamento da outra parte lesando a boa-fé do outro contratante.

Imagine-se o caso julgado pelo Tribunal Bandeirante no qual o funcionário que se desligou da empresa, pretende continuar no plano de saúde mantido por seu empregador. Tal direito resta assegurado na Lei dos Planos de Saúde (Lei nº 9.656/98, em seu artigo 31), mas de modo surpreendente para o consumidor, a operadora de plano de saúde, pretende compulsoriamente obrigá-lo a aceitar outro plano mais desvantajoso ou excluí-lo do sistema. Situação clara de tu quoque, enquanto conduta abusiva da operadora de plano de saúde (TJ SP – Apelação Cível 0038186-64.2010.8.26.0577, 10ª Câmara de Direito Privado, Rel. Cesar Ciampolini, j. 18.06.2013).

Ainda sobre o tu quoque:

STJ – RECURSO ESPECIAL REsp 1192678 PR 2010/0083602-0 (STJ) Data de publicação: 26/11/2012 Ementa: RECURSO ESPECIAL. DIREITO CAMBIÁRIO. AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADEDE TÍTULO DE CRÉDITO. NOTA PROMISSÓRIA. ASSINATURA ESCANEADA. \DESCABIMENTO. INVOCAÇÃO DO VÍCIO POR QUEM O DEU CAUSA. OFENSA AOPRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA. APLICAÇÃO DA TEORIA DOS ATOS PRÓPRIOS SINTETIZADA NOS BROCARDOS LATINOS ‘TU QUOQUE’ E ‘VENIRE CONTRAFACTUM PROPRIUM’. 1. A assinatura de próprio punho do emitente é requisito de existência e validade de nota promissória. 2. Possibilidade de criação, mediante lei, de outras formas de assinatura, conforme ressalva do Brasil à Lei Uniforme de Genébra . 3. Inexistência de lei dispondo sobre a validade da assinatura escaneada no Direito brasileiro. 4. Caso concreto, porém, em que a assinatura irregular escaneada foi aposta pelo próprio emitente. 5. Vício que não pode ser invocado por quem lhe deu causa. 6. Aplicação da ‘teoria dos atos próprios’, como concreção do princípio da boa-fé objetiva, sintetizada nos brocardos latinos ‘tu quoque’ e ‘venire contra factum proprium’, segundo a qual ninguém é lícito fazer valer um direito em contradição com a sua conduta anterior ou posterior interpretada objetivamente, segundo a lei, os bons costumes e a boa-fé7. Doutrina e jurisprudência acerca do tema.8. RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO.

E dentre essas condutas abusivas, ainda se encontra a vedação do que se tem denominado o duty to mitigate the loss, ou dever do credor de minimizar as próprias perdas (mencionado no Enunciado nº 169 das Jornadas de Direito Civil do Conselho de Justiça Federal). São exemplos de abusos corriqueiramente verificados no dia a dia. Muito comuns em ações de acidente de veículos.

Aliás, desde o advento do famoso BGB (Código Civil alemão de 1.896), marco da ciência jurídica de uma era, já se antevia em seu artigo 254 a gênese desta cláusula evidenciadora de abuso.

Pense-se em alguém que tem um carro muito usado, bastante antigo, sem originalidade nenhuma, mas que, em colisão com veículo de empresa de transportes (a cobiça surge a partir daí), busca fazer três orçamentos para reparos em empresas que reparam e restauram automóveis de luxo e concessionárias de veículos importados.

Certamente os valores serão extorsivos ante o que se buscaria em oficinas mais modestas que consertariam o carro, com qualidade (há ótimos funileiros avulsos no mercado). De igual sorte, ao invés de se buscar melhores preços no google, a suposta vítima, vai a cata de peças originais de fábrica. Obviamente que se busca utilizar de uma esperteza, onerando-se desmedidamente quem vai indenizar, e, muitas vezes, após a procedência da ação e o percebimento de valores nababescos, constata-se que a vítima, às mais das vezes, acaba fazendo o serviço nos estabelecimentos que cobram preços mais módicos, com peças do mercado paralelo.

Tal conduta é abusiva, oneram-se propositadamente as próprias perdas, que deveriam ter sido mitigadas, o que se busca, geralmente, seria o enriquecimento sem causa, outra providência vedada por lei (artigo 884CC).

Admitindo-se a incidência do duty to mitigate the loss, em matéria de acidentes de veículos, de se destacar, verbi gratia, o Julgado oriundo do TJMG. 16ª Câmara Cível, AC 1.071.07,183692-1/001, Rel. Des. Wagner Wilson, j. 11.03.2.009, DJ 17.04.2009.

Nesse sentido, o quanto apontado por Denise Pinheiro, a respeito do tema em análise:

Para os fins objetivados no presente estudo, conceitua-se duty to mitigate the loss como a possibilidade de se exigir da vítima um comportamento voltado para a minimização da ofensa que lhe foi provocada de forma antijurídica, mediante o emprego de medidas razoáveis. Para a elaboração desse conceito, partiu-se da consideração de que o nexo de causalidade entre a conduta do agente e a lesão suportada pela vítima restou consolidado e, ainda assim, poder-se-á exigir do ofendido uma atuação visando à redução do próprio prejuízo, beneficiando, com isso, o ofensor, que, então, pagará uma indenização menor justamente em virtude de um comportamento da vítima que, igualmente, será beneficiada pela redução do seu dano, devendo os seus esforços serem recompensados, por meio do ressarcimento do montante empregado para a minimização do prejuízo, havendo ainda que se considerar a vantagem da redução do custo social que, inevitavelmente, todo o dano representa.

Supressio e surrectio, outras expressões latinas, relacionam-se com supressão (perda) e nascimento (basta ver ressurectio – ressureição significa nascer de novo – assim vocês não esquecem). Essas expressões andam juntas, eis que se suprime o direito de um que apenas o utiliza abusivamente após longo abandono, fazendo nascer para o outro, um direito no mesmo sentido.

Na jurisprudência do Tribunal de Justiça de Goiás, se colhe caso interessante em que um condomínio, em sua convenção, apenas autorizava que carros pequenos fossem guardados nas garagens de cada condômino.

Ocorre que, por longos anos, um dos condôminos estacionou sua caminhonete cabine dupla na sua vaga, o que dificultava a manobra de sua vizinha. Nunca o condomínio adotou qualquer postura para impedir a utilização da vaga por caminhonete. A vizinha nunca protestou formalmente, permitindo por longos anos que isso sucedesse. Isso perdurou até que ela assumiu a vaga de síndica e interpelou o proprietário da caminhonete.

Aí, como diria Camões, em seus conhecidos Lusíadas, a Inês é morta. Já diziam os latinos dormientibus non sucurrit jus, ou, em tradução literal e livre, o direito não socorre a quem dorme. Ela perdeu o direito de reclamar pela supressio eis que, por longos anos, permaneceu inerte, a fato de somente ter reclamado quando foi nomeada síndica revela o caráter abusivo do exercício do direito (desforra), fazendo surgir para o dono da caminhonete (surrectio) o direito de guardar carro grande em vaga pequena.

Coisas do direito, como digo em sala de aula para os meus alunos, o mundo é um lugar perigoso para se viver.

Muitas situações tem autorizado o reconhecimento da supressio e da ressurectio no  direito brasileiro – pensões de ex-cônjuges ou mesmo filhos que não são executada durante anos e depois se busca tudo de uma só vez, proprietários de imóveis ocupados que vem reclamar da invasão quando se avizinha o lapso de usucapião, perdendo tutela possessória, eis que permitiram a ocupação por anos a fio etc.

Sobre a questão, por exemplo:

TJ-MG – Apelação Cível AC 10081120011861001 MG (TJ-MG) Data de publicação: 01/08/2014 Ementa: APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE MANUTENÇÃO DE POSSE – DIREITO DE PROPRIEDADE – IRRELEVÂNCIA – POSSE ANTERIOR – ESBULHO CARACTERIZADO – AÇÃO DE IMISSÃO NA POSSE – SUPRESSIO – SURRECTIO – SENTENÇA MANTIDA – RECURSO NÃO PROVIDO. – As ações possessórias têm como objetivo discutir, tão somente, o direito de posse, sendo irrelevante, portanto, as alegações de direito de propriedade, conforme previsto no § 2º do artigo 1210 do Código Civil . – O instituto da supressio e da surrectio, respectivamente, ocorre quando a ausência do exercício de um direito com o passar do tempo enseja a impossibilidade do seu exercício tardiamente, sob pena de desrespeito ao princípio da boa-fé, ao passo que, paralelamente, o exercício contínuo de determinados atos faz nascer um direito. – Assim, a inércia do anterior proprietário do imóvel, e a posterior falta de oposição à posse por parte dos herdeiros respectivos, proíbe a pretensão de desocupar aquele que reside em parte do imóvel há mais de vinte anos, de boa-fé, eis que cria para ele um direito subjetivo de continuar na posse direta de tal bem. – Recursos não providos. Sentença mantida.

No mesmo sentido, entendimento do TJRS:

TJ-RS – Agravo de Instrumento : AI 70042234179 RS agravo de instrumento. execução de alimentos. prisão. rito artigo 733. AUSÊNCIA DE RELAÇÃO OBRIGACIONAL PELO COMPORTAMENTO CONTINUADO NO TEMPO. CRIAÇÃO DE DIREITO SUBJETIVO QUE CONTRARIA FRONTALMENTE A REGRA DA BOA-FÉ OBJETIVA. SUPRESSIO.

Em atenção a boa-fé objetiva, o credor de alimentos que não recebeu nada do devedor por mais de 12 anos permitiu com sua conduta a criação de uma legítima expectativa no devedor e na efetividade social de que não haveria mais pagamento e cobrança.

A inércia do credor em exercer seu direito subjetivo de crédito por tão longo tempo, e a consequente expectativa que esse comportamento gera no devedor, em interpretação conforme a boa-fé objetiva, leva ao desaparecimento do direito, com base no instituto da supressio . Precedentes doutrinários e jurisprudenciais.

No caso, o filho deixou de exercer seu direito a alimentos, por mais de 12 anos, admitindo sua representante legal que a paternidade e auxílio econômico ao filho era exercido pelo seu novo esposo.

Caso em que se mostra ilegal o decreto prisional com base naquele vetusto título alimentar.

DERAM PROVIMENTO. Unânime.

Por fim, mas não menos importante, tem-se considerado prática abusiva quando o credor retoma o bem quando a dívida está quase toda adimplida. Não que o credor não possa receber seu crédito, o abuso estaria na pretensão de retomar todo o bem quando ocorre esse adimplemento substancial (substancial performance).

Tal tese vem sendo amplamente acatada pelo Superior Tribunal de Justiça como se observa, por exemplo, no julgamento do REsp 1051270-RS, 4ª Turma, Ministro Luiz Felipe Salomão, reafirmando posicionamento anterior do Tribunal:

“ALIENAÇÃO FÍDUCIÁRIA. Busca e apreensão. Falta da última prestação. Adimplemento substancial.

O cumprimento do contrato de financiamento, com a falta apenas da última prestação, não autoriza o credor a lançar mão da ação de busca e apreensão, em lugar da cobrança da parcela faltante.

O adimplemento substancial do contrato pelo devedor não autoriza ao credor a propositura de ação para a extinção do contrato, salvo se demonstrada a perda do interesse na continuidade da execução, que não é o caso.

Na espécie, ainda houve a consignação judicial do valor da última parcela.

Não atende à exigência da boa-fé objetiva a atitude do credor que desconhece esses fatos e promove a busca e apreensão, com pedido liminar de reintegração de posse.

Recurso não conhecido.”  Recurso Especial no 76.362-MT, relator Ministro Ruy Rosado de Aguiar

No mesmo sentido: REsp 272.739-MG, DJ 2/4/2001; REsp 1.051.270-RS, DJe 5/9/2011, e AgRg no Ag 607.406-RS, DJ 29/11/2004. REsp 1.200.105-AM, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, julgado em 19/6/2012.

No Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo há um certo consenso jurisprudencial no sentido de que se deva aplicar a tese da substancial performance quando pagos mais de setenta e cinco por cento do valor do débito.

Sobre o tema:

Processo: AI 20001638720168260000 SP 2000163-87.2016.8.26.0000
Relator(a): Celso Pimentel
Julgamento: 11/03/2016
Órgão Julgador: 28ª Câmara de Direito Privado
Publicação: 11/03/2016

por: Júlio César Ballerini Silva. Magistrado, Professor e Coordenador Nacional da Pós Graduação em Direito Civil e Processo Civil da ESD/Proordem.

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