Quando Martin Heidegger (1889-1976) em escrito datado de 1953 e intitulado A doutrina da verdade em Platão, cunhou a frase: “A linguagem é a casa do ser”, algo profundamente complexo e intenso se instaurou no debate filosófico-hermenêutico no contexto do século XX.
Segundo o autor, estaria na linguagem o eixo que ao mesmo tempo constitui e esconde as possibilidades da significação, eis que interpretar não é uma operação que extrai a verdade daquilo que conhecemos por intermédio da palavra. Ao contrário, a palavra é o mecanismo que outorga às coisas a possibilidade de ser e existir genuinamente, caminho este que sempre acontece no plano da linguagem, morada perene do ser, no vocábulo do filósofo de Heidelberg.
“Não nos renderemos”. Eis a expressão que noticia o vértice introdutório desta coluna, que submeto a uma reflexão hermenêutica, no sentido de que interpretarmos e compreendermos, ou “a melhor hermenêutica” (sic!) desta expressão não está na possibilidade autentica de extrairmos das palavras desse brado de coragem, sentido e força que move nosso existência, um sentido genuíno, verdadeiro, íntegro ou originário. A palavra é apenas o mecanismo orientador de um giro ontológico em prol da capacidade de mergulharmos no ser, e perceber que compreender envolve, em todas as circunstâncias, um compreender-a-si-mesmo.
Aluno de Heidegger, Hans-Georg Gadamer (1900-2002) destacou que a palavra compreender (verstehen)possui dois sentidos relevantes: envolve tanto adquirir a capacidade de percepção sobre o que se compreende, como também denota ser versado naquilo que se busca compreender. Assim, compreender diz respeito ao entendimento que se propõe fidedigno àquilo que interpretamos, mas envolve também um “saber-fazer”, eis que a compreensão é, nas palavras de Gadamer, também “fazer de suas próprias possibilidades um projeto”, o que envolve, sempre, “uma compreensão de si em relação a alguma coisa”.
Interpretar as normas jurídicas, as decisões judiciais, a doutrina, a prática de agentes estatais e advogados, adquire, assim, a importante conotação de que, ao evocar o brado “não nos renderemos”, talvez devamos entender que a compreensão envolve, antes de tudo, uma compreensão de si.
“Não nos renderemos”! Antes, pensemos “quem sou no momento que não me rendo?” e ao mesmo tempo “o que é, na perspectiva do sentido que me é dado, o aquilo a que não me rendo?”. Somente pela consciência da universalidade hermenêutica e a percepção de que compreender não está no mergulho em direção a uma verdade prévia do objeto, a emancipação interpretativa do Direito será possível, quando percebemos que compreender e interpretar sempre se traduz na capacidade decorrente do caráter genuíno do ser, daquilo que interpreto e ao mesmo tempo do meu ser que compreende.
“Não nos renderemos; não nos rendamos; não sejamos rendidos.”
Notas e Referências:
GADAMER, Hans-Georg. O problema da consciência histórica. Tradução Paulo César Duque Estrada. 2a ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003.
HEIDEGGER, M. Ser e tempo, Partes I e II, tradução de Marcia Sá Cavalcante Schuback, Petrópolis: Vozes, 2002.
______________ Ciência e pensamento do sentido in Ensaios e conferências, tradução de Emmanuel Carneiro Leão. Petrópolis: Vozes, 2001.
por Rafael Faria Basile é Doutor e Mestre em Teoria do Direito pela PucMinas. Professor dos cursos de graduação e pós-graduação em Direito da PucMinas.
Fonte: Emporiododireito.com.br/
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