O direito é um produto social que decorre das relações humanas e produzido pelas pessoas convivendo em sociedade, pois o homem é um animal político — aliás, essa é a característica que nos distingue dos outros animais, pois convencemos pela fala e pela argumentação; antes do direito, era apenas a força.
O direito surge para regular a convivência entre as pessoas. Tal regramento, nos primórdios, era dado pelo líder do grupo, de forma individual (o que vai desde o líder da horda primitiva até os reis absolutos, cujo poder declinou por volta do século XVIII, com o surgimento do constitucionalismo monárquico).
Dando um salto em inúmeras etapas da civilização, surge uma teoria revolucionária, fruto dos iluminismos inglês, francês e americano, verdadeiramente transformadora, que dizia que a cada homem deve corresponder um voto. Como os Estados eram muito populosos, não poderia haver democracia direta, como na Grécia clássica, tendo sido necessário criar a democracia representativa, verdadeira novidade nesse sistema, mantendo-se ainda muitos excluídos nesse rol de votantes — mulheres e escravos, dentre outros.
A novidade estabelecia que só por lei aprovada pelo Parlamento — composto pelos representantes eleitos — é que algumas condutas poderiam ser exigidas da população, tal como a imposição de tributos, a realização dos gastos públicos e a exigência de prestação de contas por parte do governo. Aqui, em algum momento dessa trajetória dos últimos 200 anos, é que se pode configurar o surgimento de um direito financeiro moderno, fruto da formalização do Estado com separação de poderes e seu consectário princípio da legalidade.
Outra novidade é que o direito privado, em especial o mercantil, que até então era aquilo que os comerciantes estabeleciam entre si, por regras não-estatais, passou a ser o que o Estado viesse a estabelecer como direito, estatizando o direito privado. A codificação ocorrida após a Revolução Francesa teve esse escopo.
A partir de então se intensifica a imbricação do direito privado com o direito financeiro, dentre diversos outros ramos jurídicos, pois o Estado passou a usar o direito como um instrumento para o desenvolvimento de suas políticas, incentivando ou restringindo diversos setores ou atividades econômicas. Neste passo a discussão sobre o direito muda de lugar, pois se antes havia (pelo menos) dois polos de poder — o do Rei e o das relações privadas — isso foi fundido, passando a haver apenas um centro formal de poder: aquele que provinha do Estado.
Porém, com a democracia representativa, para se chegar ao poder do Estado era necessário ter voto, e aqui se insere a questão mais tormentosa dos dias atuais: como se ascende ao poder do Estado. Houve uma época em que o voto era mais elitista, pois só quem fosse dono de terras ou ganhasse acima de certa quantia anual, usualmente alta, é que poderia votar e ser votado (o que se denomina de voto censitário). Isso ocorreu no Brasil durante o Império, tal como em outros países.
Se o direito passou a ser aquilo que os representantes do povo decidiam, e tais representantes não poderiam ser nem mulheres, nem pobres, surgiriam regras em prol de seus interesses? Eis o motivo pelo qual a regulação do direito ao voto é muito importante, sendo o financiamento eleitoral um capítulo especial do direito financeiro. A restrição ao voto é um aspecto importante nessa análise, pois, só em meados do século passado é que as mulheres passaram a ter esse direito em nosso país.
A partir da Constituição de 1988 o direito ao voto foi muito ampliado, tornando-se mais universal, incluindo as mulheres e os analfabetos — que podem votar, mas não podem ser votados. O episódio recente, da tentativa de cassação do primeiro mandato do deputado federal Tiririca é emblemático. O Ministério Público o submeteu a uma prova para que fosse atestado que ele não era analfabeto. O caso chegou até o Supremo Tribunal Federal, que confirmou a eleição.
Ocorre que, se compreendermos a sociedade como um local onde “não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro e do padeiro que esperamos nosso jantar, mas das considerações que eles têm por seus interesses”, como escreveu Adam Smith em meados do século XVIII, nossos representantes políticos terão por escopo reduzir o tamanho do Estado, admitindo que desses interesses individuais surja o bem de todos e sejam resolvidas as preocupações sociais.
Será que o leitor acredita que exacerbando o interesse individual de cada pessoa pode surgir o bem de todos? Sendo assim, quem cuidará do bem comum, que singelamente representarei como as praças, parques, meio ambiente e coisas semelhantes? Quem cuidará das finanças públicas e da educação e saúde públicas? Será que o interesse individual dará conta de atender a essas necessidades coletivas? Adotado esse prisma, cada qual se preocupará com suas finanças individuais ou também o fará acerca das necessidades sociais?
Surge daí o impasse financeiro, entre o bolso individual de cada qual e os cofres públicos. É a relação de tensão existente entre o direito tributário e o direito financeiro, pois se os objetivos da sociedade são muito amplos, e a fragmentação socioeconômica é elevada, torna-se mais intensa a necessidade financeira de ter recursos para prover o bem comum, o que impactará diretamente nos bolsos privados.
Se o interesse social (de todos) for deixado aos cuidados dos interesses individuais, teremos situações como a exposta no filme norte-americano Despedida em Grande Estilo (com Morgan Freeman e Michael Caine) no qual o fundo de pensão que cuidava da aposentadoria de um grupo de idosos faliu, e eles se viram diante da alternativa de fazer um assalto a banco para ter um fim de vida digno. Não vou dar spoiler. Algo semelhante pode ser visto no filme A Qualquer Custo (com Jeff Brigdes), indicado ao Oscar em 2017, que analisa os altos juros das hipotecas imobiliárias nos USA e o direito à exploração petrolífera privada.
Isso aponta para a necessidade de o direito, instrumentado pelo Estado, se voltar ao homem e não à manutenção e ao acúmulo de riquezas. O orçamento público deve ser um instrumento centrifugo de riquezas e não centrípeto. O assim chamado equilíbrio orçamentário, que foi introduzido em nosso ordenamento pela Lei de Responsabilidade Fiscal, deve se subordinar aos fins estabelecidos pela Constituição, e não a um singelo equilíbrio de contas, de balanços anuais, que podem não refletir a necessária redução das desigualdades sociais e eliminação da pobreza (art. 3º, III, CF). Isso não deve consagrar a irresponsabilidade fiscal – não, jamais. Porém é necessário que o homem venha em primeiro lugar nas preocupações governamentais, e não a contabilidade.
Esse é o objetivo da Constituição, que congrega diversos âmbitos jurídicos da convivência humana, sendo relevantíssimos aqueles que correlacionam os aspectos econômicos, financeiros e tributários, pois não se pode analisar um deles sem tratar dos demais, sob pena de se fazer uma análise estéril. A separação entre essas disciplinas jurídicas é meramente didática, pois visa sua melhor compreensão, mas a realidade a ser enfrentada e os problemas que surgem, não cabem nas formas teóricas e conceituais sobre as quais se discorre nos manuais. A realidade é mais complexa do que os livros fazem crer.
Afinal, para que serve o direito nos dias que correm? Para permitir melhor convivência social, entre desiguais, ou para exercício de dominação de uns sobre outros? Penso que aqui há uma luta por um Direito justo, que permita haver melhor convivência social, com dignidade, pelo simples fato de sermos todos humanos. A arrecadação, o gasto e o endividamento governamentais, dinamizados por políticas públicas, objeto de análise do direito financeiro, devem estar a serviço dessa análise humanista.
por Fernando Facury Scaff é advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados; professor da USP e livre docente em Direito pela mesma universidade.
Fonte: Conjur
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