“Que tempos são estes em que precisamos defender o óbvio?” A frase, atribuída a Bertold Brecht, exprime com precisão a perplexidade que se instalou entre auditores-fiscais após a publicação do novo regimento interno da Receita Federal (Anexo I da Portaria MF 430/2017), especificamente no que concerne ao disposto no artigo 341, incisos IV a VI.
Essa sequência de dispositivos confere a delegados e determinadas categorias de chefes a faculdade de instaurar procedimentos correcionais contra seus subordinados nos casos de infrações disciplinares de menor potencial ofensivo, de julgar e aplicar as penalidades de advertência e suspensão de até 30 dias. Franqueia-se ao mesmo indivíduo a possibilidade de exercer concomitantemente as prerrogativas de representar, sentenciar e executar a pena administrativa. Traçando um paralelo com o processo judicial, é como se houvesse um amálgama de Ministério Público e Poder Judiciário numa só instância.
Titulares de unidades administrativas não estão dissociados do ambiente humano em que trabalham: a exemplo dos demais servidores, estão sujeitos à admiração e apreço por alguns de seus congêneres, assim como podem demonstrar genuína incompatibilidade e hostilidade por outros. Não raro, os relacionamentos extrapolam os muros das repartições. Em inúmeras delas, grupos internos rivalizam entre si pelos espaços de poder. Mais do que meras hipóteses de suspeição (presunção relativa de parcialidade), tais situações não raro induzem o julgador a um interesse direto ou indireto na causa, tornando o impedimento (presunção absoluta de parcialidade) uma ocorrência relativamente natural.
Ao dotar chefes e titulares, inevitavelmente imersos nessa atmosfera de pessoalidade, do poder cumulativo de instaurar o processo administrativo disciplinar, julgar e condenar ou inocentar seus pares, o regimento interno atropela o princípio basilar do juiz natural, que visa garantir aos indiciados um juízo desprovido de parcialidade e subjetividade. Quando se trata de procedimento correcional — algo que não apenas interfere na esfera jurídica mas também causa perturbações nas esferas psicológica e social do servidor, adentrando na questão da dignidade da pessoa humana —, não se pode admitir 99% de impessoalidade se é possível alcançar os 100%.
Foi precisamente para eliminar esses riscos e inconvenientes que o Decreto 2.331/97 criou a Corregedoria-Geral da Secretaria da Receita Federal, instância afastada do dia a dia das repartições e, portanto, mais abalizada para emitir julgamentos disciplinares, competência que, até a edição do novo regimento, exercia com exclusividade, fazendo, com os seus escritórios, as vezes de juiz natural na matéria.
O Supremo Tribunal Federal já assentou jurisprudência no sentido de que a previsão contida no artigo 5°, inciso LIII, da Constituição Federal ("ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”) é plenamente aplicável ao processo administrativo disciplinar. Nesse contexto, as palavras do ministro Celso de Mello, no relatório do Mandado de Segurança 28.712/DF:
“Embora garanta-se o contraditório e a ampla defesa no processo administrativo disciplinar, sem a incidência da garantia do juiz natural pode-se escolher a dedo um julgador predeterminado a condenar ou absolver. Neste caso, estaríamos diante de um verdadeiro ‘faz de conta.
(...)
A incidência do postulado do juiz natural, portanto, mesmo tratando-se de procedimento administrativo-disciplinar, guarda íntima vinculação com a exigência de atuação impessoal, imparcial e independente do órgão julgador, que não pode, por isso mesmo, ser instituído “ad hoc” ou “ad personam”, eis que designações casuísticas dos membros que o integram conflitam, de modo ostensivo, com essa expressiva garantia de ordem constitucional”.
Ao conferir discricionariedade a delegados e chefes para decidir entre “instaurar procedimentos correcionais relativos aos atos e fatos praticados por servidores que lhes são subordinados” ou “representar à unidade correcional”, o novo regimento torna subjetiva a determinação de competência no processo administrativo disciplinar e, assim, abre brecha para o surgimento de tribunais de exceção.
Na definição do professor Nelson Nery Junior, "tribunal de exceção é aquele destinado a julgar determinado caso por escolha de quem determina, depois de o fato ter acontecido, quer dizer, é o tribunal designado ex post facto, seja para prejudicar, seja para beneficiar. É o tribunal dirigido, juízo de encomenda, portanto, parcial”.
Pela disciplina da Portaria MF 430/2017, o próprio titular, a seu juízo, depois de conhecidos os fatos e os envolvidos, pode determinar qual será o tribunal de julgamento do infrator. Em tese, nada, salvo a própria consciência, pode impedi-lo de utilizar essa prerrogativa para, por exemplo, aliviar o jugo de amigos ou seguidores quando estes violarem normas disciplinares.
Ao desconsiderar o princípio do juiz natural e a vedação à existência de tribunais de exceção, os dispositivos em comento padecem de flagrante inconstitucionalidade, o que pode vir a ser arguido tanto em via abstrata, por meio de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, quanto difusamente, no plano concreto, por eventuais indiciados.
É indiscutível que a sociedade demanda maior efetividade do estado na repressão a agentes que transgridem normas básicas de respeito à Administração Pública e aos administrados. Infratores devem ser célere e rigorosamente punidos. No entanto, isso não pode ser feito ao arrepio de garantias constitucionais, sob pena de se instaurar um regime jacobino.
Em verdade, a previsão contida no novo regimento pode, contraditoriamente, reforçar a impunidade, uma vez que eleva exponencialmente o risco de transgressores se salvarem judicialmente, obtendo o reconhecimento de nulidade formal de penas materialmente justas. Ademais, enfraquece a posição da Corregedoria da Receita Federal, instância que ganhou proeminência pelo pioneirismo e excelência do seu trabalho, tornando-se paradigma no serviço público federal.
Por tudo isso, ainda que o novo regimento aponte na direção da necessária modernização da estrutura administrativa do órgão, é inegável que os dispositivos questionados, pela insegurança e instabilidade jurídica que suscitam, representam um retrocesso institucional, cujo reconhecimento e reversão são imprescindíveis, antes que comece a produção de seus efeitos, prevista para 1º de janeiro de 2018.
Marchezan Taveira é auditor-fiscal da Receita Federal.
Fonte: Conjur
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