Se o nosso Código de Processo Civil (Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973) havia se tornado um Frankenstein, violado em sua essência e desprovido de um espírito, em razão da CRFB/88 e de diversas reformas, o CPP (Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941) é uma verdadeira Quimera (criatura mitológica com cabeça e corpo de leão, com duas cabeças anexas, uma de cabra e outra de dragão, cauda de serpente e asas).
A analogia se faz necessária, pois ainda havia alguma harmonia no CPC/1973, enquanto o Código de Processo Penal afronta a razoabilidade, consistindo num diploma oriundo da década de 40, em que vigorava a “Polaca”, e que ainda atravessou uma ditadura militar e a redemocratização.
Aliás, há que se reiterar que o CPP possui em seu seio, inclusive, conflito de ideologias. Há que se registrar que o Código nasceu durante a Era Vargas, atravessou o populismo de João Goulart, a ditadura militar e a redemocratização, permanecendo vigente até os dias de hoje.
Lamenta-se que, no âmbito do processo penal, ainda façamos uso de um código nascido em 1941, o que num paralelo científico se equipararia ao código de processo civil de 1939, sendo que este que já havia sido suplantado em 1973.
Nesse sentido, o reexame do vetusto código à luz da Constituição Cidadã se faz ainda mais imperiosa, demandando não só a realização de verdadeira filtragem constitucional, mas também a readequação dos artigos recepcionados e harmonização com os dispositivos inseridos por leis extravagantes.
José Herval Sampaio Júnior destaca que:
[…] são os direitos e garantias fundamentais que tratam sobre processo (garantias constitucionais processuais) então a mola mestra que conduz todo esse processo de Constitucionalização do Direito Processual, impondo uma nova concepção da ação e da jurisdição, por conseguinte todos os ramos processuais são influenciados, já que na realidade essa contaminação mexe com vários dogmas do processo brasileiro, que, tendo inspiração italiana ainda se reveste de um formalismo e autonomia que andam na contramão da efetividade dos direitos de um modo geral, ou seja, contra a sua própria razão de ser.
Entendamos, pois, por neoprocessualismo, numa visão inicial, justamente essa contaminação dos valores constitucionais em todos os ramos processuais, de modo que as garantias constitucionais processuais previstas expressamente no bojo da Constituição impõem uma releitura de todas as regras e princípios processuais, sendo inadmissível a aplicação de quaisquer expressões normativas processuais em desacordo com as premissas dispostas em tais garantias, daí o porquê da afirmação de que a jurisdição tem que ser vista sempre como tuteladora dos direitos em geral e só processo nessa visão atinge tal objetivo.
Com tal desiderato, ganha relevo a atuação do juiz, já que o poder judiciário é o principal pilar do Estado Democrático de Direito, devendo garantir os direitos fundamentais insculpidos na nossa Carta Magna.
O jurista belga François Ost afirma que o magistrado democrático deve, no seu atuar, inspirar-se também no Deus Grego Hermes, patrono das comunicações, zelando por um contraditório verdadeiramente participativo. Tanto a concepção napoleônica de julgador, caracterizada pela postura passiva e na qual este é tido como simples “boca da lei”, quanto a figura desarrazoadamente ativista, típica do Estado Social, restam superadas.
Virtus in medium est! A virtude está no meio-termo, no equilíbrio garantista que permite a legitimação democrática das decisões judiciais, ainda que contramajoritárias.
Assim, conscientes de sua missão ética, e gerindo processos efetivamente justos, os magistrados podem se transformar em instrumento de uma justiça socialmente equilibrada e equitativa, hábil a ampliar os espaços de democracia real.
Nesse diapasão, há que se destacar as ponderações sobre a atividade criativa do aplicador da lei realizadas por Jane Reis Gonçalves Pereira, ao analisar a natural expansão da atuação do Poder Judiciário na produção jurídica:
A teoria da interpretação constitucional passou por intensa evolução a partir da segunda metade do século XX. Diversos fatores históricos impulsionaram uma participação mais ativa do Poder Judiciário no processo de produção jurídica, tornando anacrônica a hermenêutica jurídica tradicional, a qual concebia a interpretação das leis como mera revelação da vontade legislativa.
Na atualidade, o Direito tem sido entendido como uma obra coletiva, iniciada pelo constituinte, mediada pelo legislador e concluída pelo juiz, que, conciliando as normas jurídicas com a realidade, confere soluções aos problemas concretos[…] A interpretação constitucional compreende um processo de construção. Porém, adotar essa tese não implica afirmar que a atividade criativa do intérprete seja ilimitada ou desprovida de parâmetros. Esta permanece vinculada à Constituição, à experiência jurídica e às regras de linguagem. É também imprescindível que a interpretação seja dotada de coerência, objetividade e capacidade de persuasão…
O reconhecimento de que a interpretação constitucional tem uma irrefragável dimensão criativa e que as insuficiências do sistema normativo autorizam o juiz a, por vezes, buscar a solução além do texto não importa em legitimar o arbítrio ou subjetivismo.
O modelo constitucional de processo tem como escopo fazer com que todas as leis processuais sejam lidas à luz dos valores propalados pela Constituição, conferindo-lhe um espírito único.
O CPC/2015, incorporando a devida constitucionalização do processo em seu bojo, bem como ao estabelecer as normas fundamentais do processo, faz renascer o processo civil, mas também lança luz sobre o processo penal, conferindo-lhe uma sobrevida democrática até que seja editado um novo código.
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P.S. Com grande satisfação, convido todos os leitores da coluna para a palestra: “AS NOVAS TENDÊNCIAS DO PROCESSO PENAL E A INFLUÊNCIA DO CPC/2015” e lançamento do livro: O contraditório participativo no processo penal: uma análise da fase pré-processual à luz do Código de Processo Civil de 2015 e da Constituição”, no dia 05 de dezembro de 2017, às 18h, no Auditório Des. Paulo Roberto Leite Ventura (Rua Dom Manuel, 25 – 1º andar – EMERJ):
Abertura e presidência da mesa: Katia Maria Amaral Jangutta (Desembargadora/TJRJ e Mestre/UGF)
Debatedores:
Anderson de Paiva Gabriel (Juiz/TJRJ e Mestre em processo/UERJ)
Felipe Carvalho Gonçalves da Silva (Juiz/TJRJ e Mestrando em processo/TJRJ)
Franklin Silva (Defensor Público/DPRJ e Doutorando em processo/UERJ)
José Roberto Sotero de Mello Porto (Defensor Público/DPRJ e Mestre em processo/UERJ)
Encerramento: Humberto Dalla Bernardina de Pinho (Promotor de Justiça/MPRJ e Professor Titular de Direito Processual/UERJ).
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Anderson de Paiva Gabriel –
Mestre em Direito Processual pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Juiz Substituto do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Anteriormente, atuou como Delegado de Polícia do Estado do Rio de Janeiro (2010-2017) e como Delegado de Polícia do Estado de Santa Catarina (2009-2010). Possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2008), especialização em Direito Público e Privado pelo Instituto Superior do Ministério Público (2010), especialização em Direito Constitucional pela Universidade Estácio de Sá (2010) e especialização em Gestão em Segurança Pública pela Universidade do Sul de Santa Catarina (2011).
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Fonte Oficial: Jota
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