Nos últimos meses, em que o noticiário político e o noticiário policial parecem se fundir em um só, tem ganhado corpo a discussão em torno da configuração de dano moral coletivo por corrupção. Registre-se que, sob o prisma acadêmico, o problema do dano moral coletivo constitui um dos mais instigantes da responsabilidade civil contemporânea. Sua própria existência é controvertida, havendo, ainda, infindáveis discussões sobre a legitimidade para pleitear indenização por dano moral coletivo, sobre o seu modo de quantificação, sobre o risco de bis in idem, entre outros numerosos e espinhosos aspectos.
Primeiro, cumpre esclarecer que o dano moral coletivo não se confunde com a tutela coletiva de danos morais individuais. Nossa ordem jurídica autoriza a propositura de ações judiciais coletivas voltadas à reparação de danos morais individuais, desde que resultantes da lesão a interesses individuais homogêneos, assim entendidos os “decorrentes de origem comum” (CDC, art. 81, III). Uma única ação judicial coletiva pode, nesse sentido, ser promovida para que todos os pacientes que ingeriram certo medicamento defeituoso obtenham o ressarcimento dos danos morais individualmente sofridos por cada um deles. A ação judicial será coletiva, mas os danos morais continuarão sendo individuais. Coisa inteiramente diversa é o dano moral coletivo. Aí não se trata mais de proteção coletiva dos interesses individuais das vítimas, mas da lesão a um interesse que se afirma pertencer não a qualquer pessoa individual, mas a toda uma coletividade determinada ou indeterminada de pessoas, um interesse que seria indivisível entre os seus titulares.
Apesar de todas essas dificuldades, cumpre reconhecer que a ideia defendida sob a denominação de dano moral coletivo é compatível com nossa ordem jurídica. A Constituição brasileira reserva expressa proteção a diversos interesses que transcendem a esfera individual. A tutela do meio ambiente, da moralidade administrativa, do patrimônio histórico e cultural são apenas alguns exemplos de interesses cuja titularidade não recai sobre um indivíduo, mas sobre uma dada coletividade ou sobre a sociedade como um todo. Se a ordem jurídica se dispõe a tutelar tais interesses, parece certo que a sua violação deve resultar em responsabilidade. Para prevenir ou remediar a lesão a tais interesses, a ordem jurídica pode até disponibilizar remédios específicos, mas o remédio residual, aplicável a qualquer caso, mesmo à falta de menção expressa do legislador, é a ação de reparação de danos. Em igual direção, o Código de Defesa do Consumidor reconhece expressamente a possibilidade de reparação de danos morais “individuais, coletivos e difusos” (art. 6o, VI). Também a Lei 7.347, que disciplina a ação civil pública, refere-se expressamente às “ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados: (…) IV – a qualquer outro interesse difuso ou coletivo.”
Nesse cenário, cabe a indagação: a prática confessa ou comprovada de corrupção pode ensejar indenização por dano moral coletivo? Em julgamento recente, ocorrido em fim de junho, o Superior Tribunal de Justiça examinou recurso interposto no âmbito de ação civil pública por improbidade administrativa proposta pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro contra diversos agentes públicos envolvidos na concepção e realização da obra Cidade da Música. No acórdão relatado pelo Ministro Herman Benjamin, a Corte reafirmou seu entendimento sobre a matéria: é juridicamente possível pleitear indenização por dano moral coletivo em sede de ação civil pública por ato ímprobo (STJ, REsp 1.666.454, j. 27.6.2017). Se a improbidade administrativa pode gerar dano moral coletivo, com maior razão pode gerá-lo a prática do crime de corrupção.
A corrupção lesa o interesse da coletividade não apenas pelos prejuízos econômicos (danos patrimoniais) causados, mas também pelas suas consequências extrapatrimoniais, como a descrença da população nas instituições públicas e o descrédito que passa a incidir sobre as suas ações. Pense-se na coletividade de empregados de uma dada empresa pública ou na coletividade de servidores de um certo órgão público que tenha comprovadamente servido de veículo para corrupção. É possível vislumbrar o abalo reputacional, a frustração profissional e outros malefícios extrapatrimoniais experimentados por essa coletividade. São efeitos que se concretizam precisamente sobre o corpo coletivo dessas pessoas, de modo distinto e mais intenso que sobre cada uma delas individualmente.
O dano moral coletivo não se confunde, veja-se, com o dano moral individualmente experimentado por cada um. Não se trata de uma soma do todo, mas da lesão a um interesse diverso, supraindividual, que se consubstancia, nesse caso, na constante persecução do interesse público e na preservação de relações probas e honestas entre os agentes públicos e privados. A possibilidade de pleitear indenização por dano moral coletivo não exclui, portanto, eventuais demandas individuais. Tampouco pode ser obstada por eventuais acordos de delação premiada, pois o objeto de tais ajustes é a pretensão punitiva criminal que compete ao Estado, por meio do Ministério Público. Diversa é a situação do dano moral coletivo, que, como instituto de direito civil, escapa à esfera penal, não podendo o Parquet renunciar à sua reparação em nome da coletividade no âmbito de instrumentos firmados em sede de persecução criminal.
Anderson Schreiber
é Doutor em Direito Privado Comparado. Mestre em Direito Civil. Procurador do Estado do Rio de Janeiro. Professor. Autor.
Fonte: Genjuridico.com.br/
Nenhum comentário:
Postar um comentário