O pequenino texto que se segue ocupar-se-á do conteúdo da decisão proferida pela Suprema Corte no julgamento da ADI 3.112/DF, na qual se reconheceu e se afirmou a inconstitucionalidade dos parágrafos únicos dos artigos 14 e 15 e do artigo 21 da Lei 10.826, de 22 de dezembro de 2003, também conhecida como o Estatuto do Desarmamento.
A aludida decisão, quanto ao que decidido, não merece reparos, se esclarecido o sentido quanto à inconstitucionalidade dos arts. 14 e 15.
A tese que gostaríamos de discutir, em razão de sua insinuação em alguns votos proferidos na decisão da ADI 3.112/DF, Relator o Min. Ricardo Lewandowski, resume-se às seguintes indagações: As normas constitucionais relativas à inafiançabilidade impedem a concessão de liberdade provisória aos acusados ou suspeitos da prática dos crimes ali mencionados? E, também: o constituinte teria retirado do legislador a possibilidade de instituir outras modalidades de liberdade provisória a tais crimes?
A nossa resposta a ambas indagações é em sentido negativo. Seguem as razões.
E que não se iluda o leitor que traga para cá os olhos já posicionados sobre a Lei 12.403/11, que deu nova redação ao art. 283, CPP, no sentido de deixar esclarecido não ser mais possível a execução provisória no Brasil.
Em primeiro lugar, porque já há Projeto de Emenda Constitucional de n. 15/2011 exatamente com o objetivo de restaurar a autorização (em texto constitucional, pois) para o cumprimento das decisões judiciais emanadas dos tribunais de segunda instância.
E, em segundo, por que, independentemente da citada PEC, as mais recentes alterações na composição da Suprema Corte poderão se antecipar à pretensão ali veiculada, como tantas vezes já ocorreu na história daquele Tribunal. Basta ver, aliás, que, mesmo com a consagração do princípio constitucional da não-culpabilidade no texto de 1988, o Supremo Tribunal Federal vinha aceitando a possibilidade de execução provisória em matéria penal até o ano de 2010, quando do julgamento do conhecido HC 84.078/MG – Plenário, Rel, Min. Eros Grau, DJ 26.02.2010 – verdadeiro divisor de águas na matéria.
Por último, como a objeto central de nossas indagações gira em torno das inafiançabilidades previstas na Constituição da República, também a Lei 12.403/11 não seria suficiente para impedir interpretações que buscassem ou busquem legitimar as referidas previsões.
Aliás, cumpre anotar que também a citada legislação (Lei 12.403/11) reproduziu o desatino constitucional acerca das inafiançabilidades, vedando a fiança para os crimes apontados na Constituição da República (art. 323, CPP).
PRISÃO E LIBERDADE ANTES DA ORDEM CONSTITUCIONAL DE 1988
Não é desnecessário dizer: o Código de Processo Penal de 1941 não se presta a fundamentar escolhas e interpretações de sistemas processuais compromissados com a realização de direitos fundamentais. E nem teve esse propósito, como se vê expressamente confessado na sua Exposição de Motivos; “As nossas vigentes leis de processo penal asseguram aos réus, ainda que colhidos em flagrante ou confundidos pela evidência das provas, um tão extenso catálogo de garantias e favores, que a repressão se torna, necessariamente, defeituosa e retardatária…
Eis sua estrutura originária: a) preso em flagrante, preso deveria permanecer, se o crime não fosse afiançável, já que a única modalidade de liberdade provisória então existente era a denominada liberdade com fiança; b) a depender da gravidade do crime, se inexistente a situação de flagrante, ainda assim o Estado não se dava por vencido: estendia sua longa manus sobre o réu, determinando a prisão preventiva obrigatória (como se deduzia da antiga redação do art. 312, CPP).
Evidentemente, não se pretendia buscar qualquer fundamentação para tais prisões; a simples causalidade do flagrante, seguida do ato prisional emanado de autoridade, justificariam as constrições. E, pior: o juízo dela (causalidade) ficava em mãos da autoridade policial (no flagrante) e do órgão da acusação (bastando o oferecimento de denúncia em crimes mais gravemente apenados).
E, ainda na redação originária, o ápice: o antigo art. 596 do CPP dizia o seguinte: “A apelação de sentença absolutória não impedirá que o réu seja posto imediatamente em liberdade, salvo nos processos por crime a que a lei comine pena de reclusão, no máximo, por tempo igual ou superior a oito anos.”
Do ponto de vista de uma teoria do conhecimento, o desconhecimento parecia ser a meta.
Como se sabe, na aplicação judiciária do direito há sempre a necessidade de esclarecimento de duas questões: a de fato, a demandar a investigação acerca do ocorrido, suas circunstâncias, autores e partícipes; e a de direito, a exigir o acertamento de subsunção, isto é, de adequação entre o fato real e a norma jurídica. Aqui, estamos a nos referir ao universo do Direito Penal, cuja hermenêutica não autoriza qualquer evolução principiológica e/ou discursiva e/ou argumentativa, em matéria de normas incriminadoras.
Ora, para além do fato das conhecidas dificuldades inerentes à formação de qualquer juízo de certeza a respeito de quase tudo é de se ver que a legislação de que estamos a cuidar (CPP, em sua redação original) sequer submetia a controle revisional os atos de autoridade do Poder Público, notadamente o Delegado de Polícia e o Ministério Público, impondo ao juiz as antecipações de um e outro.
Esse estado de coisas, no entanto, não durou tanto quanto se esperava de um novo Código. Já em 1973 e depois em 1977, as Leis 5.941/73 e 6.416/77 quebraram a estrutura prisional do CPP, passando a permitir, não só a possibilidade de recurso em liberdade para o primário e de bons antecedentes (art. 594 – agora revogado pela Lei 11.719/08), como a concessão de liberdade provisória para todas as situações em que não coubesse a prisão preventiva, sem a exigência de fiança, satisfazendo-se com o mero comparecimento do réu a todos os atos do processo (art. 310, parágrafo único, CPP).
Com isso, e desde então, os crimes para os quais era exigida a prestação de fiança e mesmo para aqueles para os quais a fiança era vedada – inafiançabilidade, pois – passaram a autorizar a liberdade provisória sem fiança.
Essa regra somente veio a ser limitada no ano de 1990, quando a Lei 8.035/90, determinou a exigência de fiança para a concessão de liberdade provisória exclusivamente nos crimes contra a economia popular e de sonegação fiscal.
Em síntese: a partir dali (já chegaremos às legislações impeditivas de quaisquer formas de liberdade provisória), sempre era possível a concessão de liberdade provisória: a) sem fiança (art. 310, parágrafo único, CPP); b) com fiança, para os crimes de sonegação fiscal e contra a economia popular. Assim, também os crimes contra a fauna, para os quais se dizia serem inafiançáveis (Lei 5.197/67),se submeteram ao conteúdo das novas leis, permitindo a concessão de liberdade provisória sem fiança.
Havia e ainda há (vigentes!), contudo, exceções.
A Lei 8.072/90 (crimes hediondos); a Lei 9.034/95 (criminalidade organizada); Lei 9.613/98 (crimes de lavagem de dinheiro), bem como as leis sobre o tráfico de drogas e entorpecentes (Lei 10.409/2002 e Lei 11.343/2006), na contramão da história e não disfarçando o simbolismo da alternativa parlamentar, vedavam a concessão de liberdade provisória, com ou sem fiança.
E a moda pegou. Outras vieram na mesma direção, caso, inclusive, da Lei 10.826/2003, o Estatuto do Desarmamento, precisamente o objeto da ADI 3.112/DF. Esse estado de verdadeira antecipação de culpa só foi afastado, em definitivo, pela Lei 12.403/11, que deu nova redação ao art. 283, caput, CPP, a exigir ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária para imposição de quaisquer medidas cautelares pessoais.
A VEDAÇÃO LEGISLATIVA DA LIBERDADE PROVISÓRIA: TRANSCENDÊNCIA E CONHECIMENTO
Ao longo da história processual penal, tem sido freqüente o descompasso entre o exercício do poder – ato de autoridade – e a respectiva fundamentação.
E, por incrível que pareça, justamente no âmbito de um processo judicial cujo provimento final deveria ser, sempre, a afirmação de um convencimento (certeza subjetiva do julgador), a partir do desenvolvimento argumentativo e probatório do contraditório e da ampla defesa. Em matéria penal, como se sabe, os critérios de afirmação de convencimento e de construção da certeza são mais rígidos que em qualquer outro espaço. A insuficiência da atuação defensiva não pode vincular o órgão judicante, sobretudo porque o processo penal não trata de partes e nem de um conflito de interesses a ser resolvido por um eventual reconhecimento de direitos subjetivos. Cuida-se, antes, da imposição de uma sanção pela lesividade de uma ação e de um resultado imputável a alguém. E, não só. A intervenção penal constitui uma das mais aflitivas injunções estatais na vida privada e na esfera de liberdade, dado o seu notório caráter estigmatizante e sua violência intrínseca.
Tanto bastaria para que se evitasse, o quanto possível, a antecipação de suas consequências. Afinal, porquê razão ninguém poderá ser considerado culpado senão após o trânsito em julgado?
Porque – dizemos nós – nada há, pelo menos como regra, que autorize a transcendência da incerteza inerente a qualquer processo de conhecimento humano, de modo a justificar a antecipação dos resultados da ordem normativa. Certamente que o flagrante delito, em muitas situações, poderá conter elementos de grande força de convencimento, do mesmo modo que a confissão livre e voluntária do agente. Mas, mesmo em tais situações, a vedação de antecipação dos resultados possíveis do processo penal condenatório se justificaria pela necessidade do juízo de subsunção do fato à norma (penal).
Com efeito, uma coisa é a confissão quanto ao fato. Outra, a sua adequação típica. Sabendo-se, então, que, pelo menos em muitos casos, a argumentação jurídica em torno do aludido juízo (de valoração jurídico-penal) poderá ampliar sobremaneira as possibilidades interpretativas, há que se ter presente a necessidade de uma fundamentação racional (isto é, submetida a controle, relativamente à ordem jurídica) para a definição de qualquer certeza. Ainda que seja certo o fato, a quem competiria examinar eventuais excludentes de ilicitude, excludentes de culpabilidade, ausência de tipicidade material etc?
Veja-se que, até aqui, estamos a nos referir ao conhecimento da questão penal, de fato e de direito, apenas para fins de justificação da formação de um juízo de convencimento judicial. Sequer estamos discutindo a possibilidade de estar ou não o juiz autorizado pela ordem constitucional a antecipar esse convencimento e, assim, a determinar a aplicação da lei penal antes do trânsito em julgado. O que, aliás, pode muito bem ser objeto de reflexões, desde que – até a modificação da atual ordem constitucional – se trate de excepcionalidades, como ocorre em todo o Direito, desde sempre.
Chegando ao texto constitucional, as coisas e as palavras se esclarecem.
A começar com a norma do art. 5º, LXVI, que estabelece que ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança.
Acaso poderia a Lei não admitir a liberdade provisória?
Sim. Se e desde que fundada em razões cautelares e/ou acautelatórias, justificadas pela tutela de interesses da mesma estatura normativa que o princípio da não-culpabilidade, como ocorre com as prisões em flagrante e a prisão preventiva – prisões cautelares, em suma.
Exatamente por isso, outra norma constitucional: ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente…(LXI).
É dizer: a lei poderá recusar liberdade provisória se, e somente se, estiverem presentes outras motivações cautelares, justificadas por escrito e fundamentadamente pela autoridade judicial.
III- Inafiançabilidade e o STF: os limites do Poder Judiciário
No julgamento da ADI 3.112/DF, decidiu-se pela inconstitucionalidade da inafiançabilidade prevista para os crimes definidos nos arts. 14 e 15 da Lei 10.826/08 (porte de arma de fogo de uso permitido e disparo de arma de fogo), bem como da vedação de liberdade provisória contida no art. 21 da citada Lei (relativamente aos crimes definidos nos arts. 16, 17 e 18).
Em relação aos primeiros, arts. 14 e 15 – imposição de inafiançabilidade – houve inegável divergência nos votos quanto ao significado do termo inafiançabilidade, colhendo-se, ainda, o tangenciamento de questões outras envolvendo a mesma matéria.
No voto do ilustre Relator, Min. Lewandowscki, argumentou-se que o tema tratado na Lei 10.828/03 era de inegável relevância, no que respeita à segurança pública, descendo-se, porém, à considerações sobre a impossibilidade de se equipararem as condutas previstas nos arts. 14 e 15 (porte e disparo de arma de fogo) àquelas definidas na Constituição da República, como inafiançáveis (tortura, terrorismo, crimes hediondos etc). Nada obstante, arrematou o Relator no sentido também da impossibilidade de prisão ex lege.
Partindo de outra perspectiva, e com sólida fundamentação jusfilosófica – ou no âmbito da teoria do direito – o Min. Gilmar Mendes demonstrou a necessidade de se esclarecer o sentido e o alcance da expressão inafiançabilidade, revigorada pelo constituinte de 1988. Acertadamente, alertou a Corte sobre a inexistência de incompatibilidade entre regras de vedação de fiança (inafiançabilidade incluída) e a simultânea previsão de liberdade provisória, ainda que sem fiança (art. 310, parágrafo único, CPP, na redação anterior à Lei 12.403/11). E, mais que isso: apontou três fundamentos constitucionais explícitos acerca de sua compreensão sobre a matéria: i) a exigência de ordem judicial escrita e fundamentada para a decretação de quaisquer prisões antes do trânsito em julgado, afastando, então, qualquer vedação à liberdade provisória até mesmo no texto constitucional; ii) o direito à liberdade, com ou sem fiança; e, por fim, iii) o princípio da não-culpabilidade. Somente por isso, não via inconstitucionalidade nos arts. 14 e 15.
Nossa pretensão, em espaço tão curto, é apenas a de demonstrar que o reconhecimento da inconstitucionalidade da regra da inafiançabilidade prevista nos arts. 14 e 15 pode dar origem à interpretações incompatíveis com o sistema dos direitos fundamentais abrigado na própria Constituição da República.
E isso porque deixa em aberto a possibilidade de prevalência de entendimento, já alardeado em doutrina, segundo o qual a inafiançabilidade no texto de 1988 deveria ser interpretada como vedação a quaisquer modalidades de liberdade provisória, instituindo-se como ponto de partida e ponto de chegada para a matéria. A leitura seria a seguinte: somente a Constituição poderia prever hipóteses de inafiançabilidade (daí a indagação – não respondida – feita pelo Min. Sepúlveda Pertence durante o julgamento); e quando previstas, não caberia qualquer liberdade provisória, nem mesmo se assim entendesse a legislação infraconstitucional.
E esse entendimento, não explicitado, mas aparentemente cogitado, não pode prevalecer, com o devido respeito àqueles que pensam o contrário. Muito menos aquele que impediria a legislação superveniente ao texto flexibilizar o tratamento prisional acautelatório.
Primeiro: sequer a Constituição – que é obra dos homens de seu tempo – poderia impedir a concessão de liberdade provisória, enquanto mantivesse em seu texto o princípio da não-culpabilidade.
Mas não é só: prevê ela que, à exceção do flagrante, toda prisão dependerá de ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária (art. 5º, LXI); e, se ainda não bastasse, que ninguém será mantido preso quando a lei previr a liberdade provisória, com ou sem fiança (art. 5º, LXVI).
Supondo que a interpretação desta última garantia individual ressalvasse a possibilidade de a lei não prever a liberdade provisória (…quando a lei admitir…), ainda assim, não estaria, jamais, autorizada a impossibilidade de concessão de liberdade provisória. É que tal somente seria possível quando devidamente justificado pela autoridade judiciária, isto é, nos casos e hipóteses de necessidade da prisão cautelar. É dizer: A vedação da liberdade provisória apenas se justifica nas hipóteses de prisão temporária ou preventiva, segundo dispõe as respectivas legislações (Lei 7.960/89 e CPP – art. 312, e art. 319, V).
Segundo: a Constituição não impede a concessão de liberdade provisória; antes a afirma. A inafiançabilidade diz respeito à vedação de aplicação de uma modalidade específica de liberdade provisória.
De se observar, no ponto, que o raciocínio utilizado para extrair da regra da inafiançabilidade constitucional o impedimento da liberdade provisória para aqueles crimes ali alinhados, partia única e necessariamente do confronto concreto entre as diferentes modalidades de liberdades provisórias existentes na ordem processual anterior à Lei 6.614/77, em que somente se admitia a liberdade provisória mediante fiança! Assim, sendo inafiançável o crime, prevalecia o ato de prisão em flagrante.
Nesse sentido, a previsão atual de vedação da fiança aos crimes de racismo, tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, terrorismo, hediondos e por grupos armados contra a ordem constitucional e o Estado de Direito (art. 323, I, II e III, CPP), não deixa de renovar o paradoxo que sempre esteve presente no processo penal brasileiro, relativamente à prisão. O que é que se pretende com isso, ou seja, com a proibição de fiança para crimes tão graves e tão censurados?
Ora, durante muito tempo, e, mais precisamente, até a chegada da Lei 12.403/11, o antigo modelo de liberdade provisória sem fiança – art. 310, parágrafo único, CPP, em sua redação anterior à Lei 12.403/11 – consagrava um tratamento indevidamente diferenciado, do ponto de vista lógico, em relação ao modelo da fiança. Com efeito, a antiga regra do art. 310, parágrafo único, CPP, poderia ser aplicada inclusive para crimes para os quais não fosse cabível a fiança, e, ao contrário desta, exigia unicamente o comparecimento a todos os atos do processo! Em resumo: aquele modelo, aplicável à infrações mais graves, estabelecia ônus menores que aquele cabível para infrações menos graves.
Por isso, dizíamos que, sabido que não se interpreta a Constituição pela lente da legislação em curso, nada impediria o Poder Legislativo de modificar o quadro vigente das liberdades provisórias, para que a fiança passasse a constituir a modalidade menos onerosa da liberdade provisória, concretizando o juízo de reprovação referido pelo constituinte de 1988, relativamente aos crimes para os quais ali se estabeleceu a regra inafiançabilidade. Com isso, as pessoas submetidas à persecução penal decorrentes de imputação da prática dos citados delitos (tráfico de drogas, tortura, terrorismo etc.) poderiam também exercer o direito constitucional de liberdade antes do trânsito julgado, salvo ordem judicial escrita e fundamentada em sentido contrário.
Mas, todavia, não foi o que ocorreu, lamentavelmente!
A Lei 12.403/11, repetindo antigos erros sobre a matéria, proibiu a restituição da liberdade mediante fiança para crimes mais graves (tortura, hediondos etc.), consoante os termos do art. 323, CPP, ao tempo em que deixou em aberto, a critério do magistrado, a possibilidade de imposição de diversas cautelares pessoais – incluindo a fiança! – para infrações penais reputadas menos graves (art. 282, §1º, CPP)!
Obviamente, e com os olhos postos na inafiançabilidade prevista na Constituição, o legislador (da Lei 12.403/11) pretendia, em verdade, proibir a restituição da liberdade para aqueles que fosse flagrados (presos) na prática daquela infrações, à maneira que, desde a sua redação originária, fazia o nosso velho CPP. Relembre-se: originariamente, somente era cabível a restituição da liberdade para crimes afiançáveis!
No entanto, e como os demais dispositivos da Lei 12.403/11 se orientavam por critérios totalmente diferentes, com a instituição de um grande número de alternativas ao cárcere, ninguém hoje sustenta a impossibilidade de restituir-se a liberdade daqueles que forem presos em flagrante nos delitos arrolados no citado art. 323, CPP. Ao menos, em sede doutrinária.
No julgamento de que estamos a cuidar, deixa-se, aqui, assentado, que a interpretação que ora se questiona não veio explicitada nos votos dos eminentes Ministros da Suprema Corte. O ilustre Min. Cezar Peluso, por exemplo, que também reconheceu a inconstitucionalidade dos art. 14 e 15, registrou, expressamente, que a liberdade provisória constitui direito do preso, com ou sem fiança.
De outro lado, estão presentes no julgamento algumas ponderações acerca da menor gravidade dos delitos dos art. 14 e 15, e que, a nosso aviso, não se relacionam com a questão da impossibilidade legal de vedação da liberdade provisória (leia-se, de restituição da liberdade). O Min. Marco Aurélio, por exemplo, chegou a afirmou que o inciso XLIII não autorizaria a fiança (o dispositivo cuida da referência expressa aos delitos de tortura, hediondos, tráfico de drogas). Sim, mas o que significaria isso?
A Lei 11.464/08, por exemplo, alterou a Lei 8.072/90, dos crimes hediondos, para vedar apenas a concessão de liberdade provisória com fiança (art. 2º, II), não impedindo, no entanto, a liberdade sem fiança. Do ponto de vista lógico, inaceitável a escolha. Porque permitir-se uma liberdade menos onerosa para crimes de maior gravidade?
No entanto, não se poderá afirmar que a previsão constitucional de inafiançabilidade dos crimes hediondos impeça esta e outras iniciativas legislativas no mesmo tom, sob pena de correr-se o risco de uma superinterpretação constitucional, supressiva das valorações históricas da soberania popular.
É por isso que a Lei 12.403/11, embora mereça todos os encômios pela restauração da força normativa do princípio da não-culpabilidade, há de ser criticada no particular. Se a Constituição da República insistiu no erro de se valer de expressões absolutamente incompatíveis com o sistema de direitos e de garantias individuais de seu texto, como inafiançabilidade e de liberdade provisória, o mesmo não teria que ocorrer, necessariamente, com a legislação em vigor. Nada impede, por exemplo, que se institua uma medida cautelar de natureza igualmente econômico-financeiro (tal como a fiança) para se impor aos aprisionados em flagrante nos chamados crimes inafiançáveis. A caução, em alguma de suas modalidades, ou até mesmo na criação de uma nova espécie, poderia cumprir essa missão. O que não se pode admitir é o retrocesso ao velho sistema de prisão e de liberdade provisória (àquele tempo era mesmo provisória!) do antigo CPP.
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Eugenio Pacelli
Doutor e mestre em Direito. Advogado. Ex-Procurador Regional da República no Distrito Federal. Relator-Geral da Comissão da Comissão de Anteprojeto do Novo Código de Processo Penal instituída pelo Senado. Professor. Autor.
Fonte: Genjuridico.com.br/
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