quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

Direito Administrativo no Brasil: novos desafios e antigos problemas

Em um país como o Brasil, todo e qualquer exercício de projeção geralmente revela-se deficitário ou incompleto. Tudo pode mudar em um piscar de olhos, e o que se tinha como certo e acabado, fica para trás em uma velocidade meteórica. Perspectivas reformistas ou de modernização podem cair por terra por não agradarem ao status quo ou – o que aparentemente virou uma constante em termos de Poder Judiciário – não agradar ao Ministro A ou B do Supremo Tribunal Federal. Entretanto, mantidas as circunstâncias razoavelmente delineadas no cenário político-institucional pós-impeachment de 2016/2018, acredito ser oportuno apontar para algumas tendências do Direito Administrativo para este ano que se inicia.

Diante de semelhanças entre o passado recente e o presente em construção, buscando contribuir para um diálogo sobre as prospecções do Direito Administrativo, parece-me pertinente relembrar um pouco os debates sobre o destino do Direito Administrativo nos anos 90 – momento histórico de forte inflexão deste ramo jurídico.

Um dos debates da época colocava em evidência um possível enxugamento do escopo temático e do espectro material do direito administrativo, os quais seriam drasticamente reduzidos em face da eclosão dos fenômenos da desestatização e da privatização das estruturas e dos serviços públicos, uma das linhas mestras da “Reforma do Aparelho do Estado” que se encontrava a todo vapor nos idos de 1995. Para alguns juristas, havia uma forte tendência de diminuição do direito administrativo enquanto ramo jurídico e área de especialização profissional, uma vez que muito do que era considerado público tornar-se-ia privado, e o direito público não mais incidiria com a mesma força no desenvolvimento das atividades agora privatizadas, bem como das relações entre os setores público e privado, espaço que seria ocupado pelo direito privado. Bem por isso as reações e críticas ao processo de Reforma Administrativa foram inúmeras, e não pararam de ecoar desde então, sobretudo oriundas de respeitadas Escolas de Direito como a da PUC-SP. Obviamente esta projeção não somente não se confirmou, como vislumbramos uma expansão do direito administrativo como um todo, muito apoiada na (i) emergência da atividade regulatória do Estado e a partir dos anos 2000, (ii) na prevalência de uma Agenda Desenvolvimentista fortemente inclinada ao social.

Outro forte debate dizia respeito ao eficientismo de uma gestão pública perdulária e ineficaz na essência, e que deveria passar a se orientar por metas e objetivos predefinidos, visando alcançar determinados resultados e ser constantemente avaliada em suas ações e decisões, para assim poder reavaliar seus caminhos e retificar seus percursos, rumo a uma melhor capacitação dos servidores públicos e do incremento da qualidade da prestação dos serviços públicos e ampliação da efetivação dos direitos dos cidadãos, sobretudo dos direitos sociais. Este ciclo da administração gerencial não se completou, os problemas se intensificaram, e a ascensão da (boa) Agenda de Desenvolvimentismo Social dos Governos Lula e Dilma fizeram com que o pêndulo da ação pública – até então apontando em direção ao privado – retornasse em direção ao público, abandonando-se o vetor da desestatização e da privatização, e o substituindo pelo da (re)estatização. O modelo gerencialista de gestão pública foi abandonado, e entrou em cena o (ainda em construção) modelo de governança pública, o qual busca em tese uma melhor interação entre eficiência, democracia e participação social.

Finalmente, se nos anos 90 o Estado buscava intensificar as parcerias com o setor privado na prestação do serviços públicos de natureza industrial e econômica, notadamente por meio de contratos de permissão, concessão e parcerias público-privadas, o que se assistiu nos anos 2000 e 2010 foi (i) o afastamento da sinergia Estado-mercado, período marcado por intenções de parceirização absolutamente mal sucedidas (p.ex. Trem-Bala São Paulo-Rio) e (ii) o reforço da sinergia Estado-sociedade, inclusive com a institucionalização de inúmeros espaços participativos para a implementação de políticas públicas, como Conselhos, Conferências Nacionais, e outras estruturas e institutos de democratização do ação pública, mormente nas áreas sociais, este talvez um dos grandes legados para a democracia brasileira, e que ainda precisa ser melhor avaliado.

Pois bem, ao menos no que diz respeito aos desafios impostos à Administração Pública brasileira, este momento pré-eleições de 2018 lembra, em certos aspectos, os desafios típicos dos anos 90. Certamente os tempos são outros, e a Agenda Administrativa de 2018 contempla (i) objetivos antigos ainda não atingidos, mas igualmente (ii) novos objetivos a serem atingidos, principalmente aqueles forjados à luz das atuais ações disruptivas nos campos da Ética Pública, da Transparência e do modo como devem ser travados os negócios público-privados no país, derivados da conhecida Operação Lava-Jato, em incessante combate contra a corrupção sistêmica no país desde 2014.

Em síntese, a Agenda Administrativa de 2018 contemplaria, a meu ver, os seguintes highlights como objetivos principais, aqui listados em ordem não necessariamente prioritária: 1. Desestatização e privatização de serviços e estruturas públicas, mas com atenção especial em modelos público-privados mais contemporâneos, para sairmos de tentação do dogma extremista de tudo privatizar ou de tudo estatizar; 2. Ajustes na configuração jurídico-normativa e reforço da segurança jurídica dos investimentos privados e das modelagens público-privadas dos negócios públicos de maior potencial econômico e industrial, como forma de atração de investimentos privados; 3. Revalorização da atividade regulatória como atividade tipicamente estatal, com foco em sua qualidade e na avaliação de impacto regulatório; 4. Reforço da disciplina fiscal das contas públicas, como modo de contenção e estabilização dos gastos e investimentos públicos; 5. Melhoria dos níveis de confiança no setor público, sobretudo por meio da geração e implementação de um ambiente limpo de negócios públicos e público-privados, a partir de referenciais como transparência, anticorrupção, integridade e compliance; 6. Implementação da governança pública e de seus vetores de eficiência, qualidade, participação e democraticidade, transparência e accountability como modelo de gestão pública preferencial; 7. Melhor tratamento jurídico-normativo e pragmático do conflito no setor público, com a redução da litigiosidade e da judicialização, por meio da ampliação do uso da mediação, conciliação, transação, dispute boards e da arbitragem nos contratos públicos; 8. Intensificação do uso dos acordos administrativos como solução administrativa para implementação de ações públicas em geral (termos de fomento, termos de colaboração) e alternativa para a imposição de sanções em geral (acordos de leniência, acordos de investimento); 9. Maior atenção às políticas e ações de Inovação no setor público, com destaque para o uso e ampliação de novas tecnologias de informação e plataformas digitais, incluindo a disseminação da Administração Pública eletrônica e 10. Busca da autonomia dos órgãos de controle internos, como Controladorias e Auditorias, bem como da melhoria constante do relacionamento com os órgãos de controle externo (Tribunais de Contas, Ministério Público).

Alinhando-se Direito Administrativo e proposta de Agenda Administrativa acima apresentada, vislumbramos em primeiro lugar um aumento considerável da base temática e da influência deste ramo jurídico, o que nos leva a projetar a sua ampliação e maior importância no cenário do Direito em geral; decididamente não houve e não haverá redução do Direito Administrativo, e sim expansão, abrindo-se inúmeras oportunidades de ordem prática e profissional às novas gerações de advogados, algo a ser experimentado e comprovado a partir de 2018.

Em segundo lugar, percebemos que se os instrumentos típicos desse ramo jurídico continuam a existir (ato administrativo, contrato administrativo), em face dos novos desafios ora impostos, novos instrumentos como acordos administrativos, atividade informacional e o próprio processo administrativo ganham maiores espaços e relevância, tornando o Direito Administrativo um campo do conhecimento jurídico mais prático e pragmático, mas com sensíveis espaços para novas teorizações e investigações científicas. Ademais disso, a busca pela democratização do Direito Administrativo continua a ganhar impulso, uma vez que o legado participacionista e social dos Governos Lula e Dilma persiste e se encontra ainda fortemente internalizado na gestão e estrutura públicas, sendo que o desafio agora é como compatibilizar a herança de necessária intenção democrática da gestão pública com as metas de crescimento econômico e social em um ambiente político-institucional aparentemente mais próximo do mercado do que da sociedade civil.

Em quarto lugar, há uma preponderância de uma Agenda Anticorrupção que se pretende point of no return, e que vem sendo imposta aos órgãos públicos mesmo que internamente não haja vontade política ou administrativa para a sua implementação. A opinião pública acaba por impor e condicionar esta agenda, ainda que as classes política e dos gestores públicos sejam a ela refratária, total ou parcialmente.

Este jogo de forças entre Governo, Administração Pública, Mercado e Sociedade civil determina a criação de arenas de indispensável interlocução entre Estado, Mercado e Sociedade, sendo que o desafio aqui – como em diversos outros temas mais sensíveis que demandam articulações público-privadas, como o tema da violência, por exemplo – é o de realmente implementar a Governança Pública como modelo de gestão pública preferencial no Brasil, motivando uma nova gramática político-jurídica-institucional para o Direito Administrativo, independentemente da ascendência desta ou daquela corrente ideológica ao Poder. Talvez o desafio aqui seja ainda maior: o de definitivamente compreender – assim como já fizeram os países mais desenvolvidos – que os Governos passam, e a Administração Pública não somente permanece, mas detém aos olhos da população uma agenda própria e autônoma, a qual deve ser realizada a despeito das alternâncias e mudanças no poder.

Finalmente, o Direito Administrativo, assim como o Direito em geral, vai aos poucos se reconfigurando à luz das novas tecnologias de informação e da inovação como um todo, sendo que plataformas digitais, apps, administração eletrônica, future law não são modismos ou experimentações de um mundo longínquo, mas realidades que mudaram a forma como o próprio Direito passa a ser construído e aplicado, trazendo inúmeros desafios ao legislador, ao intérprete e ao operador do Direito Administrativo, que também deve estar plenamente a par de todas as diversas inovações tecnológicas que possam afetar direta ou indiretamente este ramo do conhecimento jurídico.

Conforme exposto no início do texto, a análise prospectiva sobre o Direito Administrativo aqui empreendida não teve a finalidade de apresentar meras conjecturas para este ramo jurídico no Brasil. O que se intentou realizar foi um esforço exegético das possíveis combinações do cenário político-institucional ora em voga e do novo quadro jurídico-normativo que vem sendo instalado no país, e delas extrair tendências. Obviamente, sendo o Brasil o país analisado, deve-se ter em mente que a depender dos resultados das eleições de 2018 – ou de um novo escândalo de corrupção – tudo pode mudar como que num passe de mágica. Sem prejuízo disso, como acadêmico e profissional de mais de 25 anos de atuação nessa área, fica aqui minha contribuição para o debate.

Gustavo Justino de Oliveira – Professor de Direito Administrativo na USP. Árbitro, advogado e consultor em direito público. blogdojustino.com.br

Fonte: Jota.info/

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