quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

Entendendo a Filosofia do Direito – As correntes da filosofia do direito (2/4): O jusnaturalismo

Em dois artigos anteriores, estudamos as teses da separação e da conexão entre direito e moral (clique aqui) e o positivismo jurídico (clique aqui). Abordaremos agora o jusnaturalismo, que é possivelmente a corrente mais antiga da filosofia do direito, mas nunca totalmente superada, com reflexos em tendências mais modernas, como o chamado neoconstitucionalismo.

Uma primeira observação a ser feita é que o jusnaturalismo comunga do naturalismo, uma forma de pensar mais abrangente que se expressa também na ética e na política. Uma ética naturalista, por exemplo, é aquela baseada na suposta natureza das coisas ou na natureza humana, a qual forneceria as respostas sobre o que é certo e errado, o bem e o mal, as finalidades a serem perseguidas pelo homem. Como exemplo, podemos citar Aristóteles, filósofo que adota o naturalismo, ao afirmar que o homem é naturalmente um ser social.

O jusnaturalismo, portanto, sustenta que o verdadeiro direito reside na natureza das coisas, na natureza humana ou ainda na religião ou na razão, que seriam ainda aspectos, por assim dizer, naturais. Por isso essa corrente é conhecida também como a do Direito Natural e este, como já asseveraram alguns autores, pretende extrair suas normas da religião, da natureza ou da razão humana. Mas o que importa aqui ressaltar é que, diferentemente do positivismo jurídico, para o jusnaturalismo o direito não é um artifício, uma criação livre do homem, mas é algo que está no mundo.

Para essa corrente, é fundamental a noção de justiça. A justiça é o valor ou finalidade que inspiraria o direito. Ela não se resumiria ao direito escrito ou estatal, mas estaria acima dele, seria algo natural, racional ou mesmo intuitivo: os homens podem em cada situação discernir o justo e o injusto. Desses aspectos decorre que o direito positivo pode entrar em contradição com o direito natural, e é este último que deve prevalecer; de acordo com o brocardo que bem define essa corrente jusfilosófica, atribuído a Santo Tomás de Aquino, lex iniusta non est lex, isto é, a lei injusta não é lei. Radbruch, filósofo do direito do século XX, de alguma forma atenua o brocardo tomista, por receio da insegurança jurídica que poderia implicar, assinando a famosa fórmula de Radbruch, efetivamente mais branda mas ainda assim jusnaturalista: a lei extremamente injusta não é lei. Importante dizer que um autor moderno da importância de Robert Alexy, após minuciosa análise, referenda a fórmula de Radbruch.[1]

Assim, remetendo aos dois artigos anteriores acima citados, conclui-se que, enquanto o positivismo jurídico adota a tese da separação entre direito e moral, o jusnaturalismo adota a tese da conexão ou vinculação – o direito não é apenas o direito positivo, mas conceitualmente já remete à noção de justiça, que é como a moral se manifesta no mundo do direito.

Poderíamos dirigir basicamente duas críticas ao jusnaturalismo, uma de natureza filosófica e outra de natureza política. A crítica filosófica, baseada na filosofia moral, afirmaria que os juízos de valor, como os valores morais, a justiça aí incluída, não são passíveis de verdade ou falsidade, como os juízos de fato. Seriam, pois, perpassados pela subjetividade e os conflitos entre esses valores não poderiam ser dirimidos de forma racional. Assim, não teríamos uma resposta certa, do ponto de vista moral ou da justiça, sobre questões tormentosas como o aborto, a pena de morte, a eutanásia. Kelsen insiste na relatividade do conceito de justiça, o que para ele leva à necessidade do direito positivo.[2]

A segunda crítica, agora política, traz à tona a questão democrática. Enquanto o direito positivo é produto da representação política, isto é, dos representantes eleitos democraticamente, e o juiz a ele está subordinado, o direito natural independeria dessa representação, residindo num plano superior, metafísico ou racional, e poderia ser invocado pelo juiz até para descartar em determinado caso o direito positivo. O problema é que, ainda que exista uma resposta correta do ponto de vista moral ou da justiça, distinta daquela fornecida pelo direito positivo, muitas vezes não teremos como saber com certeza qual é ela e continuaríamos divergindo, o que torna necessária a regra da maioria para dirimir tais conflitos, como bem apontou o constitucionalista Jeremy Waldron.[3]

Por fim, é importante destacar que, embora rejeitem a associação de suas doutrinas com o jusnaturalismo, aspectos relevantes dessa corrente podem ser encontrados em autores modernos ligados às teses do neoconstitucionalismo, como Zagrebelsky[4], Alexy[5] e Dworkin. Para este último, com o seu “law as integrity”, o direito é formado não só pelas leis e precedentes judiciais, mas também pelos princípios políticos e morais  existentes em dada comunidade; a sua “tese da única resposta correta” em cada caso também guarda relação com a ideia jusnaturalista de que podemos saber qual é a solução objetivamente justa para os conflitos.[6] [7]

Essas e outras questões, em linguagem direta e baseada nos principais autores contemporâneos, você encontrará no meu livro Filosofia do Direito, publicado pelo Grupo GEN. Clique aqui e conheça a obra.

[1] ALEXY, Robert. Conceito e validade do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
[2] KELSEN, Hans. A justiça e o direito natural. Coimbra: Almedina, 2001, p. 100.
[3] “Na ausência de qualquer acordo sobre como alguém poderia dizer qual é a correta, entre duas crenças conflitantes sobre os fatos morais, a imposição da crença de uma ou poucas pessoas sobre aquela da população como um todo parece ainda arbitrária e antidemocrática.” WALDRON, Jeremy. Law and Disagreement. Oxford: Oxford University Press, 1999, Leitor Kindle, p. 184.
[4] Este autor reconhece que o “direito por princípios” por ele defendido apresentaria o mesmo “modo de operar” do direito natural, como se existisse de fato um. ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil: ley, derechos, justicia. 10ª edição. Madri: Editorial Trotta, 2011, p.119.
[5] Vimos acima que Robert Alexy adota um conceito não-positivista do direito baseado na “fórmula de Radbruch.”
[6] DWORKIN, Ronald. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
[7] Remetemos o leitor igualmente à nossa tese de doutorado, atualmente no prelo: Metaética e neoconstitucionalismo: os limites da verdade e a democracia. 2017. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

Paulo Gustavo Guedes Fontes
Doutor em Direito do Estado. Mestre em Direito Público. Desembargador do Tribunal Regional Federal da 3ª Região. Professor de Direito Constitucional.

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