sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

A inconstitucionalidade da nova sanção política da União

Em 10/01/2018, a Lei n. 13.606/2018 foi publicada no Diário Oficial da União (DOU), cujo principal objetivo seria a instituição do Programa de Regularização Tributária Rural (PRR). Todavia, no bojo do mesmo diploma legal, foram promovidas outras importantes alterações legislativas, com destaque à inédita faculdade atribuída à Fazenda Nacional para que, ainda na esfera administrativa e independentemente de qualquer decisão judicial, possa (i) inserir o nome de contribuintes inadimplentes em cadastros restritivos de crédito (como SPC e SERASA) e (ii) tornar indisponíveis bens dos contribuintes que sejam tidos como penhoráveis ou sujeitos a arresto.

Essa novel faculdade fiscal foi instituída em razão do disposto no artigo 25 da referida lei, por meio da qual se acresceu à Lei n. 10.522/2002 (que trata dos cadastros informativos de contribuintes inadimplentes – CADIN) os dispositivos que a embasam e ainda permitem à própria Fazenda Nacional a edição de atos normativos complementares que a regulamentem.

Evidentemente, o poder criado pelos artigos supratranscritos traduz-se em mais um meio indireto de cobrança de dívidas tributárias pela Fazenda Nacional, em detrimento de já gozar de vastos recursos significativos e próprios para a sua execução.

Isso porque o não pagamento de tributos já ensejava, isolada ou concomitantemente, (i) o ajuizamento de execução fiscal e a consequente restrição de bens, até mesmo com a narrada indisponibilidade de valores e bens, por força do art. 185-A da Lei n. 6.830/1980 (Lei de Execução Fiscal – LEF), quando deferida pelo juiz; (ii) a inscrição do contribuinte no CADIN; (iii) a negativa de fornecimento de certidões de regularidade fiscal (a impedir que as empresas obtenham empréstimos e financiamentos com instituições bancárias, participem de licitações, etc.); e (iv) até mesmo o protesto de certidões de dívida ativa (CDA) relativa ao débito não quitado, por força da polêmica alteração promovida em 2012 no artigo 1°, p. único, da Lei n. 9.492/1997 e da decisão promulgada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em 2016, na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n. 5135.

Assim como aconteceu em relação ao protesto de CDA, a indisponibilidade administrativa de bens e direitos certamente dará origem a relevantes discussões judiciais, uma vez que possui um nítido caráter coercitivo em clara violação aos direitos constitucionais ao contraditório, ao devido processo legal, e ao livre exercício da atividade econômica, conferidos a todos os contribuintes.

Neste sentido, a inconstitucionalidade material da alteração legislativa introduzida na Lei nº 13.606/2018, pode ser abordada por duas principais perspectivas: (i) pela vedação jurisprudencial ao uso de sanções políticas como meio oblíquo para cobrança de tributos; e (ii) pela impossibilidade de restringir bens e direitos de contribuintes sem autorização judicial.

Segundo o sistema jurídico vigente, a CDA consiste em um título executivo extrajudicial (art. 784, inciso IX, CPC/2015), cuja execução observará o procedimento específico previsto na LEF.

Embora a lei não exclua a possibilidade de utilização de outros métodos extrajudiciais para a cobrança de tributos, a utilização de instrumentos oblíquos de coação dos contribuintes (para que se sintam obrigados a pagar os tributos sob pena de arcarem com significativas restrições e ônus) importa em violação tanto à garantia de devido processo legal, quanto ao substantive due process of law, as duas dimensões do direito constitucional positivado no artigo 5º, inciso LIV, da Constituição da República de 1988 (CR/1988), expressas ao determinarem que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.

Se assim não o fosse, o direito de acesso ao Judiciário para controle da validade do crédito tributário seria reprimido pelo constrangimento causado ao contribuinte pelas sanções políticas que teria de suportar, exigências gravosas que o forçarão a adimplir a obrigação ainda que esta seja eventualmente contestável, enquanto única alternativa à preservação de sua atividade econômica.

Essa coerção ilegal acaba por violar também outros direitos constitucionais, como as garantias ao contraditório e à ampla defesa, previstas no art. 5º, inciso LV, da CR/1988 (segundo o qual o contribuinte deve ser ouvido e deve poder produzir e apresentar as provas capazes de comprovarem a invalidade da exigência fiscal), e o livre exercício de qualquer atividade econômica, prevista no art. 170, p. único, também da CR/1988.

Nesse contexto, é inadmissível (e manifestamente inconstitucional) que a Fazenda Nacional possa promover, já na esfera administrativa, a indisponibilidade de bens e direitos do contribuinte devedor como meio de coagi-lo ao adimplemento da obrigação, especialmente quanto tal faculdade antes era cabível apenas (i) no bojo de execução fiscal já ajuizada, (ii) com expressa autorização judicial, e (iii) mediante o preenchimento das hipóteses legais autorizadoras.

A utilização de meios indiretos para cobrança de dívidas pela Fazenda não é um tema inédito; ao contrário, o STF já julgou dezenas de casos similares ao longo dos anos, produzindo três diferentes súmulas que demonstram a inconstitucionalidade dessa nova sanção política instituída:

Súmula nº 70: É inadmissível a interdição de estabelecimento como meio coercitivo para cobrança de tributo.

Súmula nº 323: É inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos

Súmula nº 547: Não é lícito à autoridade proibir que o contribuinte em débito adquira estampilhas, despache mercadorias nas alfândegas e exerça suas atividades profissionais.

Apesar dessa inequívoca linha histórica de orientação firmada pela Suprema Corte, poder-se-ia entender que o recente julgamento da ADI 5.135 teria legitimado a utilização de meios indiretos de cobrança de dívida tributária, ao determinar que “o protesto das Certidões de Dívida Ativa (CDA) constitui mecanismo constitucional e legítimo, por não restringir de forma desproporcional quaisquer direitos fundamentais garantidos aos contribuintes e, assim, não constituir sanção política”.

Entretanto, uma análise detida dos fundamentos do caso em questão revela que a posição dos Ministros votantes em relação às sanções políticas se manteve inalterado. Isso porque embora o acórdão da ADI 5.135 ainda não tenha sido publicado, houve divergência quanto à constitucionalidade do protesto e prevaleceu o entendimento capitaneado pelo Ministro Roberto Barroso no sentido de que o protesto de CDA deve ser admitido (i) como forma de reduzir o elevado número das execuções fiscais e (ii) exatamente por ser menos gravoso do que o bloqueio (indisponibilidade) de recursos nas contas de contribuintes inadimplentes antes admitido apenas perante o Judiciário [1] (que coincide com a nova sanção política instituída pela Lei n. 13.606/2018).

Portanto, na esteira da linha de orientação seguida pelo STF, entendemos que a indisponibilidade administrativa de bens configura uma sanção política e deverá ser julgada inconstitucional. Isso porque a indisponibilidade de bens e direitos interfere diretamente no direito de propriedade (livre disposição) do contribuinte e no seu planejamento econômico (princípio basilar da ordem econômica constitucional), à medida que pode comprometer o cumprimento de suas obrigações perante credores e até mesmo o pagamento de seus funcionários.

A previsão de indisponibilidade ampla, aplicável a qualquer caso de mera inadimplência, consiste em uma medida desarrazoada, que parece pressupor existir obrigações constitucionais fictícias, conforme perfeitamente rebatido em situação análoga julgada na ADI 173/DF, também julgada pelo STF em 2008 [2].

Este também é o entendimento já consolidado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) [3], que também repudia o uso de sanções políticas para a cobrança de tributos e ainda determina que o bloqueio de ativos financeiros deva ser obrigatoriamente precedido pela citação do contribuinte na execução fiscal (neste sentido, vide os acórdãos publicados no AgRg no AREsp 383.108/SP, DJe 23/10/2017; e no REsp 1641054/PE, DJe 07/03/2017).

Ainda que o novo instrumento coercitivo da Fazenda Nacional não fosse considerado uma sanção política, a indisponibilidade irrestrita a partir do mero inadimplemento (já que a nova lei não faz ressalvas à sua aplicação) certamente irá encontrar resistência por parte do STF. Neste sentido, é possível citar o voto da Ministra Rosa Weber no MS 34.446 MC/DF, no sentido de que, mesmo em casos de comprovado dano ao erário (mais gravosos que a mera inadimplência tributária, especialmente em relação a contribuintes de boa-fé que simplesmente estejam enfrentando dificuldades financeiras), deve-se compreender “a indisponibilidade de bens financeiros da sociedade empresária como exceção, não como regra”.

Para além de todos os argumentos desenvolvidos acima, a indisponibilidade administrativa de bens trazida pela Lei n. 13.606/2018 também pode ser compreendida como nítida hipótese de inconstitucionalidade formal, exatamente porque o art. 185-A do Código Tributário Nacional já havia determinado que a indisponibilidade de bens só pode ser admita mediante determinação do juiz e quando “o devedor tributário, devidamente citado, não pagar nem apresentar bens à penhora no prazo legal e não forem encontrados bens penhoráveis”.

Isso porque, nos termos do art. 146, inciso III, alínea ‘b’, da CR/1988, cabe a Lei Complementar estabelecer normas gerais sobre obrigações e créditos tributários, não se podendo admitir que lei ordinária, ainda que posterior, traga à União (e tão somente à União) uma prerrogativa que vai de encontro ao determinado em lei complementar já vigente.

Conclusão

Em suma, a medida coercitiva introduzida pela recente Lei 13.606/18 consiste no mais recente capítulo de uma longa história de sanções políticas intentadas pelo Fisco e que, à luz da jurisprudência pátria, se revela absolutamente inconstitucional.

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[1] Vide a notícia completa no link a seguir: Protesto de certidões de dívida ativa é constitucional, decide STF – http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=329103.

[2] BARBOSA, Joaquim. Voto na ADI 173-6/DF; STF – disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=582642.

[3] Neste sentido, vide os seguintes julgados recentes: RMS 51.523/CE, Rel. Ministro GURGEL DE FARIA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 08/06/2017, DJe 07/08/2017; e AgRg no RMS 23.578/SE, Rel. Ministro GURGEL DE FARIA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 13/09/2016, DJe 29/09/2016.

Antonio José Ferreira Levenhagen – Advogado do escritório Rolim, Viotti & Leite Campos. Mestrando em Direito Público pela PUCMinas

Fernanda de Oliveira Silveira – Advogada do escritório Rolim, Viotti & Leite Campos. Mestranda em Direito Público e especialista em Direito Tributário pela PUCMinas. Professora de Pós-graduação na PUCMinas e na ESA/OABMG

Fonte Oficial: JOTA.

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