segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Constitucionalismo

Toda a caracterização do Constitucionalismo ao longo da história se funda na pluralidade de teorizações e práticas jurídicas construídas em torno do pressuposto de limitar os poderes do Estado e defender os direitos fundamentais do ser humano.  

Esses traços essenciais permanecem em vigor e fazem parte do transfundo dos atuais debates sobre a razão de ser das Constituições e as tarefas do Direito Constitucional. 

Certamente, o Constitucionalismo contemporâneo apresenta traços que o diferenciam daquele surgido no bojo dos processos revolucionários do século XVIII e que permaneceu à sombra dos códigos durante o século XIX. Amparados nessa constatação alguns autores identificam o surgimento de uma possível nova cultura jurídica e recorrem à expressão neoconstitucionalismo para sintetizar essa mudança. Como veremos no decurso da exposição, o que seja inédito ou realmente inovador é algo que deve ser convenientemente estudado, detectando suas virtudes e dificuldades. A expressão é polêmica, muito embora seja aglutinadora de uma série de tópicos que marcam um processo crescente de constitucionalização dos ordenamentos jurídicos. 

A advertência resulta a nosso juízo importante porque é de se considerar que a Ciência do Direito e a cultura jurídica se encontram numa espécie de “revolução permanente”. Isso significa que o que seja o Constitucionalismo de nossos dias contém algo do pretérito, remoto ou imediato. Sabe-se que não há cortes epistemológicos tão radicais que não permitam pensar no passado para negar ou confirmar categorias jurídicas que viajam no tempo. Como tampouco, que não fórmulas constitucionais desprendidas de intenções e esperanças para o futuro. 

Assim, no presente estudo, optamos por examinar o Constitucionalismo a partir de seus antecedentes, focando especialmente o construído na Inglaterra a partir do século XIII, para posteriormente identificar algumas das tradições mais impactantes do movimento – o Constitucionalismo dos Estados Unidos e o francês - sem esquecer importantes contribuições do Constitucionalismo alemão. A seguir serão feitas algumas considerações sobre o chamado novo Constitucionalismo da América Latina. Finalmente, nos deteremos na atual fase, iniciada com as constituições que surgem na Europa com posterioridade ao final da Segunda Guerra e seus tópicos mais relevantes.

1. O constitucionalismo
Mais que uma categoria filosófica ou um conceito estritamente jurídico o Constitucionalismo é um movimento que traduz uma luta ideológica e politica. Trata-se da teorização e prática em torno à limitação da arbitrariedade estatal como instrumento para a proteção e salvaguarda dos direitos do ser humano. Esses debates se desdobram em questões como o papel das Constituições, a identificação dos valores e fins constitucionais e o desenvolvimento da Ciência do Direito Constitucional, compreendendo tanto os aspectos referentes a uma Teoria Geral como os atinentes a uma Dogmática singular e especializada. 

Dai que seja um movimento sempre em voga, que requisita e invoca o respeito aos dispositivos constitucionais como elementos ou regras do jogo ao redor da qual gravitam as forças que concorrem para o exercício do poder político, bem como garantia de liberdade das pessoas e condição decisiva da legitimidade dos governos.

Esta, contudo, não é a única possibilidade de compreensão. Assim, Paolo Comanducci alerta para vários tipos de Constitucionalismo na modernidade. Propõe a ideia de um constitucionalismo em sentido amplo e em sentido estrito. No primeiro, a ideologia requer a criação de uma Constituição, qualquer que esta seja, enquanto que no segundo, requer um tipo específico de Constituição, ainda que, em ambos os casos, o objetivo seja a limitação do poder para impedir o despotismo. A seguir distingue entre um Constitucionalismo débil e um forte (liberal), a diferença entre eles reside em que apenas o segundo estabelece a garantia dos direitos fundamentais perante o poder estatal. Logo, um Constitucionalismo dos contrapoderes, no qual se propõe um sistema institucional de limitação do poder, os freios e contrapesos, a diferença de um Constitucionalismo de regras, fundado no racionalismo e que reconhece a prioridade axiológica de certos direitos como a propriedade. Finalmente, um Constitucionalismo reformista e um revolucionário, diferenciados pela necessidade de estabelecer um pacto para promulgar um novo texto normativo ou de destruir o poder existente para instituir um novo poder que deve depois abordar a tarefa de criar o novo texto.1

Presentemente o Constitucionalismo revela uma renascida vitalidade após as trágicas experiências do fascismo europeu. Com efeito, os textos constitucionais reclamam uma supremacia para além do formal, que inclui a vinculação de todas as relações jurídicas a seus comandos normativos. Para tanto se reformula o sentido e alcance da lei e se propõem novas possibilidades hermenêuticas. Nesta etapa também há de se destacar a emergência de novos atores no marco da pluralidade da América Latina, associada, e tendo como pano de fundo o contexto próprio de sociedades periféricas, à aspiração de que o Constitucionalismo contribua à solução de problemas históricos de exclusão e negação de direitos. 

Tendo em vista a amplitude temática que supõe a abordagem do Constitucionalismo, o tratamento doutrinal adequado sugere escolher caminhos pautados em referências clarificadoras, que permitam visualizar os institutos que dele emergem assim como as épocas de seu desenvolvimento. 

Por essa via, no seu marco evolutivo é possível distinguir várias etapas: a dos Antecedentes, a do Constitucionalismo liberal, a do Constitucionalismo social  e a fase atual caracterizada como Novo Constitucionalismo, Constitucionalismo de princípios ou como preferimos, Constitucionalismo contemporâneo.

As etapas não são rigorosamente marcadas por datas. A diversidade de circunstâncias e a vastidão das teorizações e fórmulas que incidem nas passagens do Constitucionalismo impedem traça-las com exatidão. Entretanto, isso não quer dizer que não possam ser pautadas referencias temporais. 

Destarte, pode-se marcar como ponto de partida do Constitucionalismo liberal a Revolução Francesa, em 1789, ainda que as ideias liberais de J. Locke já fossem de alguma maneira colocadas em prática no Constitucionalismo inglês com a desconcentração do poder e as liberdades consagradas a partir da Charta Magna Libertatum de 1215. E também, embora América Latina não tenha conhecido de fato o Estado social, não destoa argumentar que essa forma de Estado corresponde a um Constitucionalismo caracterizado pela incorporação das necessidades humanas à maneira de autênticos direitos nas constituições a partir da terceira década do século XX. Que esse Constitucionalismo foi bloqueado pela experiência nazi-fascista na Europa e que logo renasceu ao final da Segunda Guerra.

Perceba-se que estamos a tratar de realidades diversas, de singularidades, convergências e divergências, ainda que no âmago, reitere-se, repousa a acepção da desconcentração para o exercício do poder político, dirigida à proteção dos direitos fundamentais. Por isso, as múltiplas formas de conceber esses elementos e a participação dos seres humanos na sua concretização fazem parte da própria riqueza conceitual do fenômeno constitucional e constituem o acervo e patrimônio da práxis do Constitucionalismo de hoje.

2. Antecedentes do constitucionalismo
Longe de pretender um reducionismo analítico, pedagogicamente parece possível identificar e mencionar dois caminhos para explorar o Constitucionalismo. O primeiro deles toma como ponto de partida o pensamento de autores clássicos da Antiguidade como Aristóteles e Cícero. Assim, lembra Verdú que Aristóteles apontou a ideia de Constituição e incluso, ajudado por Teofrasto, compilou mais de uma centena de Constituições das pólis da época, das quais lamentavelmente somente fica sua exposição sobre a Constituição de Atenas.2 Contudo, muito embora a estrutura da organização social tivesse como base a escravidão e os textos constitucionais de hoje sejam formatados de maneira diferente, a imagem platónica da Politeia, na qual a realidade se constitui sob o ideal da justiça e de uma doutrina sobre os fins do Estado vinculado à paz e existindo para garantir o desenvolvimento das faculdades e direitos dos indivíduos, pode ser abordadas como antecedentes do moderno Constitucionalismo.3 

Na Roma Antiga, o tímido entendimento de uma elevada relação entre cidadão e Estado deu um salto com a concepção de res pública exposta por Cicero e o surgimento da actio populare, categorias jurídicas futuramente essenciais para os fundamentos do Constitucionalismo europeu.4 

Sem demérito dessa versão, à qual se lhe concede o espaço de ilustre precursora na Antiguidade, outros autores colocam o surgimento do Constitucionalismo atrelado aos sucessos da França do século XVIII, protagonizados pela burguesia e seus conjunturais aliados na luta contra o absolutismo para garantir a expansão das liberdades públicas, a exemplo, ainda que com diferenças importantes, do acontecido a ritmo lento e persistente na Inglaterra a partir do século XIII. 

É a visão de Santi Romano, para quem a expressão "[c]onstitucionalismo designa as instituições e os princípios que são adotados pela maioria dos Estados que, a partir dos fins do século XVIII, têm um governo que, em contraposição àquele absoluto, se diz ‘constitucional’".5 

Assim, por esse prisma, o Constitucionalismo e a forma de governo constitucional forjada e amadurecida na Europa com a Revolução Francesa, tem espelho no processo político acontecido na Inglaterra que originou a Charta Magna Libertatum em 1215 e que resultou, muitos anos depois, através de uma evolução progressiva, numa ordenação inédita com a edição por Oliver Cromwell do Agreement of the people e o Instrument of Governement em 1653, autênticas Constituições que refletiam as doutrinas políticas puritanas.6 

Essa experiência de limitação do poder dirigida ao reconhecimento de liberdades se expressa conceitualmente como rule of law, um modelo de continuidade histórica pela qual o monarca se subordina ao common law e à souvereignity of Parliament.7 

A adoção do modelo pelos Estados Unidos na Constituição de 1787 e depois na Europa continental sugeriu a Santi Romano que “o direito constitucional dos Estados Modernos resulta do direito constitucional inglês e das demais ordenações, dele mais ou menos derivadas diretamente”.8 

De fato, o Constitucionalismo inglês é histórico e resulta difícil em alguns casos detectar suas fontes que de tão fragmentadas se perdem no tempo. Sem embargo, como ressalta Zagrebelsky: “O que conta em última instância, e do que tudo depende, é a ideia de direito, de Constituição, de código, de lei, de sentença. A ideia é tão determinante que as vezes, quando está particularmente viva e é amplamente aceita, pode incluso se prescindir da “coisa” mesma, como sucede com a Constituição da Grã-Bretanha (...)”.9   

O empenho em superar essa dispersão de textos ingleses levou a Blackstone a publicar seus Commentaries on the laws of England entre 1765 e 1769. Neles, a síntese dos méritos do Constitucionalismo da época se achavam designadamente em dois fatores: a) a coexistência de uma instituição parlamentar aristocrática – Câmara dos Lordes - e outro de representação das outras classes, especialmente da burguesia emergente – Câmara dos Comuns – e um judiciário independente; b) o reconhecimento de cláusulas de liberdade como a do Due Process of Law, incorporada como Law of the Land na Magna Charta de 1215, da Rigths Petition de 1628, do Habeas Corpus Act de 1679 e dos Bill of Rigths de 1689, e sua transformação em liberdades jurídicas.10 

Em que pese estas reconhecidas virtudes do Constitucionalismo Inglês, a tradição constitucional dos Estados Unidos – constitucionalismo escrito, fundado na supremacia e na rigidez constitucional – não as observava com bons olhos. Thomas Paine referia-se ao surgimento dos Bill of Rights como um negócio através do qual as diversas partes do governo partilharam poderes, lucros e privilégios, enquanto que à nação lhe foi dito: “a tua parte é o direito de petição” Sobre o parlamento, instituição caríssima para Inglaterra, Paine sustentava: 

“Aquilo foi algo que se criou e se investiu a si próprio na autoridade que detém. Umas quantas pessoas decidiram reunir-se e autodenominaram-se parlamento. Muitos deles nem sequer foram eleitos e os outros não foram eleitos para esse fim (...) não posso acreditar que uma nação, ao defender os seus direitos, possa ter chamado a tudo isto constituição”.11 

Entretanto, na perspectiva histórica é inegável a recepção da herança inglesa nos Estados Unidos, especialmente pela aceitação da maior parte dos institutos ligados à defesa dos direitos nas nascentes constituições das ex-colónias. E, desde logo, também na França houve essa recepção, ainda que mediadas e traduzidas pelos americanos, com a diferença de que curso dos acontecimentos e a influência racionalista de autores como Rousseau gerou uma tradição de Constitucionalismo escrito e codificado, reproduzindo, como será visto, um pacto entre o governo e a sociedade.

3. O constitucionalismo dos Estados Unidos
O Constitucionalismo escrito e de tipo rígido atingiu um especial e singular desenvolvimento nos EUA. Como bem explica E. Zoller, o fato não é fortuito e atribui-se a duas razões: a primeira, foi nesse país que nasceu a doutrina que eleva a Constituição ao grau de lei culminante (paramount law), reinando a título supremo (supreme Law of the Land) e considerando nulas, através da declaração do Judiciário, toda norma jurídica inferior contraria a ela (judicial review). Logo, porque o Constitucionalismo foi interpretado e aplicado pela Corte Suprema outorgando-lhe, através de uma variada construção jurisprudencial, uma concreta forma institucional.12 

Desde a sua gênese, o Constitucionalismo escrito ligou-se à necessidade de dar forma ao federalismo como organização política e administrativa. Com efeito, a nascente federação tinha por base a junção de 13 Estados que criaram governos autônomos mantendo como ponto de unidade a Declaração de 4 de julho de 1776. Cada Estado dividia-se em counties ou circunscrições dirigidas por um Comitê de cidadãos eleitos através de democracia direta. Foram precisamente essas instâncias reunidas em convenções as deflagradoras do processo de discussão das Constituições estaduais. Os primeiros textos normativos se ocupavam de regular a proporção dos representantes e os mecanismos de eleição, delinear os controles republicanos, autorizar despesas públicas e consagrar instituições e liberdades. 

Nesse percurso a Constituição federal foi o resultado de sucessivas Convenções estaduais, realizadas entre setembro de 1774 – época em que o Congresso era apenas um grupo de delegados – até a Convenção de 1787 realizada em Filadélfia, na qual o General G. Washington foi eleito presidente. Aprovado o projeto de Constituição, cada Estado convocou nova Convenção ratificadora, que ademais deveria estabelecer as cotas de representantes. 

Todo esse deliberado conjunto de técnicas dirigidas à maior participação possível dos novos Estados exprimia a clara intenção não só de se diferenciar do governo inglês eliminando de antemão os resíduos de um possível sonho monarquista de alguns, senão também de fortalecer um sentido de destino comum encarnado pelos pais fundadores (Founding Fathers) num projeto de nova nação. Por isso Paine apontava que 

“Uma constituição é propriedade de uma nação, não dos que exercem o poder. Todas as constituições de América foram proclamadas em nome do povo. Em Inglaterra, não é difícil perceber que tudo tem uma constituição, exceto a nação (...) o esforço que a nação fez para destruir a tirania ou para a tornar mais tolerável foi confundido com a ideia de constituição. A Magna Carta, como era chamada na altura (agora é como um velho almanaque) destinava-se apenas a fazer com que o governo abdicasse de uma parcela de seus privilégios. Não criava nem instituía os poderes do modo como o faz uma constituição (...)não vemos nada que se assemelhe a uma constituição, mas apenas restrições ao poder assumido”.13  

Com essa filosofia a Constituição tinha uma função prática, que consistia em extinguir as forças que de maneira autônoma poderiam atentar contra ela, reduzindo ao máximo a atuação dos atores políticos a uma mecânica objetiva.14 Para isso, justamente, a Constituição deveria plasmar não somente sua soberania, senão também obstaculizar sua modificação, procurando, senão uma eternização, pelo menos sua permanência durante um tempo de consolidação das novas estruturas. Destarte, no artigo VI da Carta consagrou-se: 

“Esta Constituição, as leis dos Estados Unidos aprovadas de acordo com ela e todos os tratados celebrados ou que se celebrarem sob a autoridade dos Estados Unidos constituem a lei suprema do país; e os juízes em cada Estado serão sujeitos a ela, ficando sem efeito qualquer disposição em contrário na Constituição e nas leis de qualquer dos Estados”. 

A manutenção da originalidade constitucional era reforçada também pelo artigo V, que previa que o Congresso somente poderia propor emendas se 2/3 de ambas as Casas o considera necessário ou em virtude das Assembleias legislativas de 2/3 dos Estados membros. Perceba-se que dessa maneira a estabilidade ou rigidez constitucional adquire uma dimensão sustentadora do pacto entre os Estados, marcando o inicio de uma nova época.   

Entretanto, a compreensão do Constitucionalismo dos EUA passa inelutavelmente pela abordagem da defesa da Constituição pela Corte Suprema. No plano específico dos direitos e liberdades, bem como no do controle recíproco entre os órgãos de poder, os grandes avanços e retrocessos derivam das decisões em exercício do judicial review.15  

Nos marcos do sistema construído os confrontos frequentes entre o Legislativo e o Executivo passaram a ser arbitrados pela Corte, numa precoce judicialização da política. Porém, o quadro da atuação jurisdicional nesse âmbito oscila entre o fomento do equilíbrio político e a interferência na intimidade e funcionamento dos órgãos até a postura de self restraint ou autocontenção. Essa evidencia deve-se colocar em bom plano porque não se pode esquecer que os tribunais constitucionais, em qualquer modelo ou tradição de Constitucionalismo, são uma instituição política.16 

Não é de outra maneira que podemos contextualizar algumas decisões da Corte em momentos delicados da história do país nas quais as garantias constitucionais foram suspensas. Por via de exemplo, quando o Presidente Wilson sancionou a Lei de Sedição de 1918 – Sedition Act – a cujo amparo foi autorizada a política dos Palmer raids, pela qual o Departamento de Justiça, entre novembro de 1919 e janeiro de 1920, sequestrou e encarcerou mais de 10 mil pessoas por suspeitas de subversão, em clara motivação oriunda do fascismo que já se assomava na Europa, a Corte manteve uma interpretação restritiva da liberdade de expressão no caso Schenck v. United States.17  Igualmente, quando o Presidente Roosevelt instituiu tribunal militar de exceção para processar e julgar mais de cem mil nacionais de ascendência japonesa por suposta infidelidade à Constituição, em particular no caso Korematsu v United States, a Corte se absteve de colocar na pauta o julgamento da legitimidade do tribunal.18 

Com esta reserva geral, naturalmente que há de se mencionar de início a decisão de 24.02.1803, no caso Marbury vs Madison, na qual a Corte deu origem a doutrina da Judicial Review. O Juiz Marshall sustentou, diante da insurgência de Marbury, que embora nomeado como juiz de paz pelo governo anterior era impedido de tomar posse:

“A questão de saber se um diploma legal incompatível com a constituição pode tornar-se lei do país é uma questão extremamente interessante para os Estados Unidos (...) que o povo tem um direito original para estabelecer, para seu futuro governo, tais princípios, como o de que, em sua opinião, deve a maioria conduzir-se para alcançar a sua própria felicidade, é a base sobre a qual foi erigida toda a estrutura social americana.  (...) Os poderes do legislativo são definidos e limitados, e para que esses limites não possam ser confundidos ou esquecidos, é que a constituição é escrita...) Certamente, todos os que elaboraram uma constituição escrita vêem-na como sendo a lei fundamental e suprema da nação e, consequentemente, a teoria de qualquer governação deve ser a de que uma lei do legislativo incompatível com a constituição é nula”.19 

Em que pese a ser uma decisão circunstancial, da qual não se extrai se ao certo Marshall tentou estabelecer o princípio da supremacia constitucional e da própria Corte como guardião do Texto de 1787 ou se na verdade foi uma alternativa valiosa, através de uma decisão que não teria como ser executada pela própria Corte, num momento em que o Executivo passou a ser o réu, a verdade é que o realmente decisivo é que a diferença do Constitucionalismo francês, no qual a Constituição pode permanecer durante longo tempo como um documento político, nos Estados Unidos manter a unidade dos Estados membros da federação implicava que a Corte tivesse a possibilidade de dizer o direito às controvérsias desta natureza, que de alguma maneira poderiam se reverter numa vulnerabilidade do pacto federativo. Por outras palavras, era uma necessidade política jurisdicionalizar a federação e fortalecer a Corte para esse fim. 

Na sequencia, a ampliação dos poderes da Corte se deu a partir da exploração construtiva da cláusula do due process of law, que foi desgarrada de sua feição processual para assumir um aspecto substancial (substantive due process), em virtude de sucessivas decisões de controle de razoabilidade dos atos do Poder Público. Assim, embora as primeiras decisões da Corte ratificassem o devido processo legal especialmente no aspecto processual penal: proibição do bill of attainder, que considerava à pessoa culpada sem a precedência de um processo; validação do jury trial ou direito a julgamento por júri; proibição do doble jeopardy que impedia alguém ser culpado duas vezes pelo mesmo fato; vedação de autoincriminação ou not self incrimination; direito a um dia na Corte – His day in the Court – e à celeridade processual – prompt hearing –,20  logo depois a Corte utilizou a cláusula para impedir o vigor de atos do Congresso que considerou carentes de razoabilidade. 

A polêmica sobre a necessidade de satisfação dessa condição como parâmetro da atuação legislativa foi provocada pelo pedido de anulação de uma lei do Estado da Louisiana que determinava o monopólio de distribuição de carnes para consumo das pessoas durante 25 anos.21  O desenvolvimento da exigência derivou em questões como a consagração do veto presidencial e a submissão do Legislativo à razão comunitária.22   

Uma passagem que merece reflexão foi a postura self-restraint da Corte no caso da imposição por acordo entre o Executivo e o Congresso da legislação do New Deal. Na ocasião os atos do Executivo presidido por Roosevelt para sufocar a crise geral do capitalismo de 1929 foram declarados inconstitucionais porque identificados como uma tentativa de reforma por decreto do Texto de 1787.23 Contudo, a Corte guardou distância política diante de novos atos do Executivo que não contaram com a autorização do Congresso.24    

Perceba-se que no Constitucionalismo dos EUA a self restraint, no limite, para usar a expressão de A. Araújo, se confunde com a recusa a julgar motivada por preocupações como a separação de funções, a garantia de independência dos juízes ou a convivência harmoniosa entre as jurisdições federal e estadual. Como detecta o autor lusitano, tanto esse posicionamento como o ativismo refletem concepções distintas sobre o modo de exercer a função judicial, que sem embargo tem algo em comum: a salvaguarda de princípios e interesses considerados ‘superiores’ (ou exteriores) à função judicial qua tale.25   

Na Europa, que seguia com atenção as fórmulas desenvolvidas na América sustentadas no stare decisis – doutrina do precedente –, o período compreendido entre 1895 e 1937 foi identificado como etapa do government of judges – governo dos juízes. O marco de referencia aduzido por constitucionalistas europeus foi o abandono da Constituição, substituída pelo laisses-faire constituconalism dominante no mundo dos negócios e associado às doutrinas que procuravam reencontrar princípios do common law. Um ativismo conservador promovido pela própria Corte favoreceu os empresários e negociadores e se posicionou contrariamente à proteção dos trabalhadores.26 

Nesse contexto de retrocesso em 1896 a Corte decidiu o caso Plessy v Ferguson, que introduziu a doutrina separados mais iguais (separate but equal), consistente em que não violentava a 13ª emenda da Constituição dos Estados Unidos as leis que determinavam instalações e lugares separados para negros e brancos quando ambos desfrutavam de condições iguais de comodidade e qualidade. Segundo a Corte:

“(...) tal lei não põe em causa a igualdade legal das raças nem tende a estabelecer um estado de servidão involuntário. A mesma lei não está em conflito com a 14ª Emenda à Constituição, não implicando necessariamente a inferioridade de uma das raças em relação à outra, tal como não implica qualquer inferioridade o estabelecimento de escolas separadas para crianças brancas ou negras ou a proibição dos casamentos mistos”.27 

A doutrina se manteve até a decisão do caso Brown v. Board of Education of Topeka em 1955 quando a Corte determinou a inconstitucionalidade da segregação de crianças brancas e negras nas escolas públicas por negar o princípio da equal protection of the laws garantido pela 14ª Emenda:

“Separar as crianças negras das crianças de outra raça com idade e qualificações semelhantes, gera nelas um sentimento de inferioridade quanto ao seu estatuto na comunidade, que pode afetar os seus sentimentos e pensamentos de um modo irreversível”.28  

As relevantes questões de discriminação racial suscitaram uma importante contribuição ao Constitucionalismo, oriunda das Ordens Executivas de Kennedy em 1961. As medidas estabeleceram cotas nas práticas de contratação no cenário laboral do país e inauguraram as Affirmative Action. A Corte não somente posicionou-se a favor como acompanhou vigilante a edição da Lei de Direitos Civis de 1964.  

As ações afirmativas se estenderam ao campo da educação e no caso Regents of the University of California v. Bakke, a Corte admitiu sua constitucionalidade.29 Logo, na decisão Fullilove v. klutznick, declarou ser constitucional a lei que estabelecia a atribuição de 10% das obras públicas às pequenas empresas das minorias.30 

Passando a outros terrenos, em 1937, no caso West Coast Hotel v Parrish, a Suprema Corte declarou a tese da presunção de constitucionalidade dos atos do Legislativo, ratificada um ano depois em United States v. Carolene Products Co. Foi introduzida, assim, uma nova diretriz hermenêutica para o exercício do controle que, contudo, manteve a exigência de razoabilidade do substantive due process.  

No período conhecido como de caça às bruxas, a Corte assumiu posições que variaram desde a declaração de constitucionalidade do Taft Hartley Act, que exigia aos sindicalistas o juramento de que não faziam parte do partido comunista, até decisões como no caso Watkins, antigo dirigente sindical que se recusou no Comitê de Atividades Anti-americanas a nomear os antigos militantes e simpatizantes do partido comunista. 

Na decisão da Corte lê-se: 

“O poder de realizar inquéritos parlamentares inscreve-se nos poderes de criação legislativa. A pesar de amplo, este poder não é ilimitado, não podendo os parlamentares servir-se dele para sua própria promoção política ou como manobra política contra os que são investigados (...) Designadamente, tem de ser reconhecido à testemunha o direito de não se auto-incriminar (...) a pessoa em o direito de conhecer o assunto para o qual a pergunta é considerada relevante. Esse conhecimento tem que ser possibilitado no meu grau de explicitação e clareza que a Due Process Clause exige na expressão de qualquer elemento de um tipo de crime. (...) É dever da Comissão, perante a objeção da testemunha baseada na relevância, declarar para a ata qual o tema que está sob inquérito na altura e em que medida as questões postas são pertinentes para o inquérito (...)”.31 

Na mesma sessão, no caso Yates v. United States, a Corte determinou a distinção entre a simples expressão de uma teoria filosófica tendente a derrubar um Governo e a ação política necessária para obter um resultado. A decisão considerou que apenas esta segunda hipótese merecia punição.32 

Já em 1974, a decisão da Corte em United States v. Nixon proclamou um obter dictum, estabelecendo que embora a força do princípio do privilégio do Executivo para nada dizer e nada comunicar tanto ao Legislativo quanto ao Judiciário quando se trata de questões de segurança nacional, nesse caso o Executivo estava juridicamente obrigado à entrega das informações que comprometiam ao Presidente e seus subordinados. 

Mais recentemente, logo dos ataques de setembro de 2001, o Constitucionalismo dos Estados Unidos deu sinais de franco retrocesso na defesa das liberdades e dos direitos humanos. A Resolução Conjunta do Congresso dos Estados Unidos, de 15.09.2001, no meio da comoção ocasionada pelo atentado, autorizou o Executivo a gerir o Estado de Emergência instalado com a Declaration of National Emergency by Reason of certain terrorism Attacks (proc. 7463 de 14.09.2001) e de forma explícita à vulneração do sistema de garantias constitucionais como medida de exceção que prontamente. 

Todavia, o excepcional se tornou habitual e a edição da Presidential Military Order sobre a “Detenção, tratamento e procedimento respeito a alguns não cidadãos na Guerra contra o Terrorismo” de 13.11.2001, violentou a separação de funções e o princípio da legalidade criando delitos e penas e produzindo uma situação de instabilidade para pessoas de vários lugares do mundo, vistas como inimigos combatentes – enemy combatants – que assim declaradas não teriam possibilidades de titularizar direitos fundamentais previstos na Constituição ou nos tratados internacionais. Embora o Ato determinasse que os prisioneiros deviam desfrutar de “tratamento humano e não discriminatório”, o julgamento foi confiado aos tribunais militares, retirando-se da jurisdição ordinária e do alcance dos postulados constitucionais. Um exemplo disto é o memorandum de 25 de janeiro de 2002 do Conselheiro da Casa Branca ao Presidente, recomendando a não aplicação das convenções de direitos humanos porque a guerra ao terror “converte em obsoletas as rígidas limitações de Genebra sobre o interrogatório de inimigos combatentes”.33 Tais técnicas de interrogatório com base na tortura tão só foram barradas no ano 2015 pelo Congresso. 

As ameaças a um constitucionalismo de compromisso com as históricas garantias fundamentais retornam com a edição pelo Presidente Donald Trump do Decreto Anti-migratório que proíbe o ingresso nos Estados Unidos de pessoas originarias de vários países, especialmente àquelas oriundas de sociedades de maioria muçulmana. Nesse terreno alguns dilemas constitucionais deverão ser decididos pela Corte. Dentre eles se a sensibilidade histórica e o Constitucionalismo da contemporaneidade suportam que o direito de locomoção, de migração e de requerimento de refúgio num país, pode ser quebrado através de ato unilateral do Executivo com fundamento em premissas de proteção da segurança nacional. Embora o artigo 2º da Constituição expressamente determine que o Presidente é competente para tratar das relações internacionais, o que inclui as medidas migratórias, a identificação de povos e comunidade inteiras como terroristas já de por si constitui uma violação dos dispositivos da própria Carta. 

4. O constitucionalismo continental europeu
Apesar da defesa das contribuições do Constitucionalismo alemão como mola propulsora da expansão da separação de funções e o Rechtsstaat – Estado de Direito – na Europa, feito por autores como Stern,34 atrevemo-nos a afirmar que fora da Inglaterra o Constitucionalismo tem como referencia as contribuições do processo francês e suas vicissitudes históricas.35  

Assim, lembra Diaz Arenas que quando Turgot, em 1775 presentou a Luis XVI sua Memória sobre as Municipalidades, iniciou o documento afirmando que a causa dos distúrbios na França estava em que a nação não possuía uma Constituição. Do texto se infere que Turgot imaginava uma estrutura sólida de obediência ao Rei, fundada em assembleias que sem autoridade política se encarregassem de conduzir as orientações desde a cúpula do poder.36  

Destarte, os monarquistas dividiam-se entre aqueles que propalavam o pensamento de Bodin na obra Les Six Livrés de la Rèpublique, publicada em 1576, que deificava o conceito de soberania e traçava suas “marcas” como competências ilimitadas37 e os que observavam a necessidade de uma abertura de poder, preocupados, e com suficientes razões, pela real ameaça da ascensão burguesa. 

A burguesia, por sua vez, caminhava procurando um projeto de auto-regulação da vida econômica e exigia com veemência um debate público sobre as questões nacionais. Seus representantes apresentavam as reivindicações burguesas como reivindicações de toda a sociedade, o que deveria convergir em um programa revolucionário de racionalização integral do Estado.38 Essa racionalização mantinha um transfundo ideológico ao princípio bastante controverso, mas que aos poucos se decantou a partir das premissas do contrato social e da proteção da liberdade. 

Nesse contexto, a publicação em 1748 do Esprit des Lois de Montesquieu e logo, a partir de 1765, dos Commentaries de Blackstone, foram vistos no começo com receio, consideradas recomendações que provinham do Direito inglês. Depurar a França da influência historicista inglesa era o empenho da Escola Racionalista de Rousseau e Mably. A publicação do Contrato Social em 1762, ainda que também referenciada no pensamento de um inglês – o que ratifica a impossibilidade de ignorar esta tradição constitucional – John Locke, na obra Two Treatises of Government de 1689, serviu de base para a construção de um Constitucionalismo de outro tipo, fundado no contrato como explicação racional sobre a origem da sociedade (pacte d’ association) e a origem do poder (pacte de gouvernement).  

Por isso, nos fundamentos do Constitucionalismo francês e americano a ideia de contrato é central, embora o pensamento de Paine nos EUA, como já anotamos, relutasse a essa evidência. O objeto dos contratos ao interior do Estado eram os elementos do poder, assignando-se a cada classe com capacidade de decisão política e conforme a sua força uma parcela desse poder. Corroborando essa visão, veja-se como na França a Constituição de 03.09.1791, manteve a monarquia hereditária declarando-a, no seu artigo 2º, inviolável e sagrada. De imediato, nos dois artigos subsequentes, se determinava que “[n]ão há na França autoridade superior à lei. O rei não reina senão por ela”. Comente-se que, em 25.09.1792, se deu o desconhecimento total da autoridade real até culminar com a sua eliminação.

Para o liberalismo a racionalidade do contrato facilitava um discurso compreensível para todos, que substituía em um exercício de liberdade política a ordem estatutária feudal – o status social – caracterizadora de uma sociedade imóvel, por outra na qual os sucessivos pactos originavam uma sociedade em movimento, disposta ao crescimento econômico.40  

Entretanto, uma Constituição devia se pautar por fins éticos e dentre eles o de maior valor para a burguesia era precisamente a liberdade. Com efeito, na concepção dos revolucionários do século XVIII o ser humano é um fim em si mesmo e a sociedade e o Direito os meios para facilitar a conquista dos seus interesses. O Constitucionalismo liberal fluirá quase que naturalmente por esse canal ideológico muito bem exposto no Discurso de B. Constant de 1819, ao retratar a distinção entre a liberdade dos antigos e dos modernos: “[a] liberdade dos antigos consistia na participação ativa e contínua no poder coletivo. Nossa liberdade deve consistir no desfrute aprazível da independência privada”.41  

Nesses parâmetros, o Estado racionalizado é fundado e limitado pelo Direito. Na prática, a necessidade histórica impôs a obrigatoriedade jurídica de que o Executivo e o Judiciário se rendessem ao império do Direito, ou seja, à supremacia da lei, norma geral e abstrata proclamada pela Assembleia legislativa em função de garantir os direitos dos homens.42 

Sendo assim, a experiência do Constitucionalismo liberal tem como eixos determinantes na França, o que prontamente se converterá num legado: a) a teoria da soberania encarnada não em um homem, senão na nação;43 b) a separação de funções como forma de exercício do poder através de órgãos independentes e com competências constitucionalmente predefinidas; c) a afirmação da lei como fonte do Direito, diretamente atrelada à condição de ser reconhecida como a vontade geral;44 d) a finalidade de promover os direitos do homem e do cidadão, consagrados na célebre Declaração que com pretensões de universalidade foi proclamada em 26.08.1789.

Veja-se que aqui há uma diferença substancial entre o Constitucionalismo da Europa e o já examinado dos Estados Unidos. No europeu não se desenvolveu a Constituição como fundamental law, é dizer, como norma jurídica capaz de exigir que a lei a ela se subordinasse.  A questão foi agravada pela aventura napoleónica, que consagrou o princípio monárquico, que fez do imperador uma fonte preconstitucional do poder e terminou de fixar a Constituição como um documento retórico. Diga-se de passagem, também na Alemanha a orientação hegeliana, exposta por Lasalle na ideia de Constituição folha de papel, ao tempo que deixava clara a raiz do texto normativo nas forças de poder teve o efeito paralelo de lhe retirar força jurídica. 

Destarte, o Code Napoleão, que entrou em vigor em 21 de março de 1804, se afirmaria como declaração regulamentadora da relação entre os homens e entre os homens e as coisas; na verdade, o estatuto fundamental perfeitamente alinhado às necessidades de segurança jurídica fornecida pelas regras nele estabelecidas.

Bem por isso na Europa do século XIX apenas a Suíça outorgava a sua Corte Suprema a competência para exercer a jurisdição em matéria constitucional, com exceção do controle da legislação federal. A Constituição alemã de Frankfurt, fruto da revolução de 1848, consagrava a jurisdição constitucional, todavia, a monarquia não a promulgou após a derrota da insurgência. Nesse momento da história da Europa, a grande razão da rejeição do controle de constitucionalidade era a alegada incompatibilidade com a soberania dos monarcas. A única exceção a esse quadro foi a Áustria que em 1920 estabeleceu a Corte Constitucional com o poder expresso de revisar os atos do legislativo.45

No que tange ao Constitucionalismo Alemão há que destacar dois aspectos especialmente relevantes no século XX. O primeiro consiste no grau de unidade dos trabalhadores que através de jornadas históricas de luta plasmaram muitas das suas aspirações na ordem jurídica, contribuindo decisivamente para o surgimento do Constitucionalismo social com a promulgação da Constituição de Weimar, de 1919; a segunda, a reelaboração do controle de constitucionalidade originário dos Estados Unidos, com o exemplo austríaco e tendo em vista as dificuldades sofridas para a concretização da Carta de Weimar. 

Convêm lembrar, nesse sentido, a célebre polêmica entre Hans Kelsen e Carl Schmitt com relação ao sistema de proteção das normas constitucionais. O sistema desenhado por Kelsen tinha como premissa a sua teoria da hierarquia normativa. Assim, a jurisdição constitucional passa a ser um elemento necessário à supervivência do Constitucionalismo. Para Schmitt, a jurisdição constitucional redundaria na “judicialização da política” ou na “politização do Judiciário”.46 No modelo final, Kelsen, em lugar de instalar o controle em todos os juízes e ordená-lo com fundamento no stare decisis, o concentrou numa Tribunal Constitucional, que como diz García de Enterria, não é um autêntico Tribunal, porque um tribunal aplica uma norma prévia a um fato concreto. A Corte Constitucional não dirime e julga situações concretas, senão que elimina a norma que não é compatível com a Constituição, ou seja, trata-se de um legislador não positivo, mas negativo.47 

Não há como nos marcos do Constitucionalismo europeu esquecer a trágica experiência do nazismo e do fascismo, que negou qualquer possibilidade de vigor da dignidade a uma imensa massa de pessoas, lacerando o sentido de humanidade que constitui signo valorativo e finalístico do Direito. O Constitucionalismo somente reaparecerá na Europa, com novas roupagens e perspectivas, logo da Segunda Grande Guerra, e seu desenvolvimento tem orientado os enfoques e problematizações do Constitucionalismo Contemporâneo. 

5. O constitucionalismo da América Latina
Sem a pretensão de realizar uma generalização que torne indetectáveis as singularidades históricas, jurídicas e políticas, numa região tão vasta, parece claro que partir do século XIX, logo da derrota das metrópoles espanhola e portuguesa e o surgimento dos Estados nacionais, o Constitucionalismo neste segmento do mundo teve como primeira referencia a herança francesa, para logo ir-se incorporando contribuições de outras tradições. Por certo, num ambiente de negação monarquista, com a exceção do Brasil, formulou-se um desenho institucional formalmente republicano, fundado na separação e na Declaração de Direitos do Homem e o Cidadão. 

Torres Iriarte enfatiza que é inegável que os primeiros textos constitucionais estão vinculados ao espírito do liberalismo do século XVII, imbuídos da crise do absolutismo e as explosões das revoluções burguesas. A Declaração francesa de Direitos Humanos preparou o terreno para uma nova subjetividade onde a pessoa se convertesse em cidadão, deixando de ser súdito. Os polêmicos livros dos enciclopedistas franceses, em especial os de Rousseau, Voltaire, Helvecio e Diderot, eram traduzidos, discutidos e interpretados por intelectuais como Mariano Moreno na Argentina e Antonio Nariño na Colômbia.48 

Nessa América em formação, as primeiras constituições foram a de Haiti de 09.05.1801; a de Venezuela, de 02.12.1811; Quito, de 15.02.1812 e a do Apatzingán, no México, de 22.10.1814. Torres Iriarte concede um merecido destaque à Constituição haitiana, proclamada pela liderança revolucionária e afrodescendente Toussaint de Louverture, quando ainda o país era colônia francesa não só porque reconhecia a independência, mas também porque declarou a liberdade dos escravos e o fim da servidão. A Constituição mexicana proclamada por Jose Maria Morelos como “Sentimentos da Nação” consagrou a soberania popular, a liberdade, a igualdade e a separação dos poderes. 

Logo da independência, o pensamento constitucional de Bolívar tornou-se importante para a procura da unidade subcontinental, entretanto o projeto foi entorpecido e vencido pelas nascentes oligarquias que preferiam pedaços territoriais liderados por seus caudilhos para o exercício de livre comércio e sem render contas a poderes centrais.

Destarte, na gênese do Constitucionalismo da América Latina se identifica a ausência nas elites de uma cultura política para a integração nos moldes de uma cooperação construtiva, que pudesse alicerçar um desenvolvimento econômico ligado à distribuição da riqueza em benefício da população das nascentes sociedades pós-independência. Internamente, em lugar de intentar o desenvolvimento de instituições abertas à inclusão e ao fortalecimento da cidadania, a opção pela violência, seja pela carência de Estado, abandonando a sua sorte a amplos segmentos populares, seja pela agressão através dos próprios agentes estatais, traduziu com frequência infeliz a falta de compromisso com os direitos mais elementares do ser humano. Na Colômbia, por exemplo, na segunda metade do século XIX, até a promulgação da Constituição de 1889, se registram mais de 25 guerras civis entre liberais e conservadores, agremiações políticas representantes de segmentos em constante pugna pelo domínio do Estado. No Brasil a escravidão somente foi abolida em 1888, por lei assinada pela Princesa Isabel.  

Nesse contexto, as questões inerentes à interdependência de funções e à organização político-administrativa passavam pela ambiguidade na definição da sujeição dos entes governamentais à ação do Direito. De tudo resultou um Constitucionalismo pouco criativo, mistura instrumentalmente adaptada da Europa e Estados Unidos, porém tímido diante de uma realidade de conflitos próprios de sociedades inseguras e dependentes. A Constituição cumpria o papel de estatuto formal da sociedade, enquanto a cultura dos códigos era reproduzida desde o ensino jurídico e se entrelaçava com as necessidades de expansão do capital de poucas famílias espalhadas ao longo do território dos Estados.  

Sob tais condições vigoraram a supremacia da lei e a relação Estado-indivíduo que prestigiava os direitos-autonomia. Os textos constitucionais tornaram-se, desde o começo, um dever ser ideal que pouco o nada tinha a dizer diante das normas de tudo ou nada que sintetizavam a necessidade de conduzir com mediana segurança o regime livre cambista próprio do capitalismo incipiente. Muito distante se encontravam as sociedades de constitucionais que pudessem ser consideradas armas de mobilização para a conquista de direitos. 

O individualismo e a precária noção do público como espaço ou como condição para o gerenciamento do Estado afastou o cidadão do planejamento e controle da atividade administrativa, abrindo espaços para o autoritarismo e a monopolização dos debates e decisões nacionais.  

Com a concentração econômica e a precária promoção dos direitos as relações se verticalizaram, as diferenças tornaram-se desigualdades, e as exclusões e os preconceitos, ora pelo sexo, ora pela orientação sexual, pela etnia, pela nacionalidade, pela cor da pele, pela religião, pelo preconceito de classe, ou pelo lugar à margem que a pessoa ocupava no modelo de produção e distribuição da riqueza, originaram sociedades abertas ou sutilmente violentas.   

Advirta-se, no entanto, que no final do século XIX e começos do XX alguns elementos técnicos do Constitucionalismo mais avançado passaram a se incorporar aos diplomas normativos. Dentre eles, a judicial review, que se manteve, embora tênue, como um contraponto importante ao legalismo, embora sem condições de adquirir maior musculatura jurídica diante da ideia clássica do juiz aplicador, que raramente interpretava ou tinha chances de se insurgir diante da lei que considerava injusta.  

Por isso, a entrada no século XX foi marcada por uma visão empobrecida da supremacia da Constituição. O Constitucionalismo pagou caro por essa modelagem, pois se evidenciou a dificuldade em observar e analisar convenientemente o fenômeno jurídico, que foi sempre colocado como algo construído por poucos e para poucos, sem assento nas necessidades das maiorias, de linguajar rebuscado e tedioso.  

Entretanto, os elementos sociais oriundos de Weimar, das constituições soviética, mexicana e espanhola de começos desse século – dentre outras - renovaram a cidadania e estimularam a ideia de um Estado mais compromissado pelo menos no papel.  As constituições, dentre elas a brasileira de 1934, passaram a consagrar direitos sociais e começou-se a forjar uma identidade na América Latina fruto do reconhecimento de problemas comuns. Ressalte-se, entretanto, que embora possam existir constituições pródigas em direitos, essa premissa não significa, necessariamente, vontade constitucional de satisfazê-los. A advertência valia para o constitucionalismo social de começos do século XX, no qual um Estado novel significava esperanças de renovação, e vale também para a análise do recente Constitucionalismo regional.

Na fase posterior à Segunda Guerra, ao tempo que se registravam mudanças importantes na Europa, que desembocaram nas fórmulas neoconstitucionalistas, na América Latina vivenciaram-se duas etapas: A primeira, entre 1964 e 1985, na qual primaram modelos de Estados de fato, autoritários – Estados de não-direito – encabeçados por militares, seja diretamente no exercício direto do poder como ocorreu no Brasil (a partir de 1964), na Argentina (a partir de março de 1976), no Uruguai e no Chile (desde 1973), no Paraguai (com períodos ditatoriais que se sucederam praticamente sem interrupção entre 1954 e 1989), ou com participação significativa dos setores militaristas entrelaçados a governos civis como no caso da Colômbia, na qual viveu-se permanentemente em situação de exceção (estado de sitio) até a Constituição de 1991. Não está demais dizer que em tais condições, o poder constituinte foi subordinado, as Constituições desapareceram ou foram diluídas e os direitos humanos fortemente castigados, deixando sequelas negativas nas novas gerações.

Deve-se registrar o caso de Chile, pais no qual logo do golpe contra Salvador Allende em setembro de 1973, que suspendeu a Constituição de 1925, uma nova Carta foi aprovada em consulta popular realizada sob a força do militarismo em 1980 com a pretensão de outorgar um verniz de legitimidade a uma das mais odiosas ditaduras continentais.

A segunda fase nasce com a queda dos Estados de exceção e o surgimento de alguns novos diplomas constitucionais. Vamos aprofundar justificadamente em alguns dos processos mais recentes, tendo em vista a necessidade de abordar o denominado novo constitucionalismo latino-americano. 

Com efeito, a partir das duas últimas décadas do século XX em alguns Estados da região vivenciaram-se novos momentos constituintes atribuídos a vários fatores: primeiro, o cesse das ditaduras em países como Brasil, que gerou uma reorganização do sistema estatal e o reconhecimento constitucional de direitos fundamentais negados no período imediatamente anterior. Assim, a Constituição de 1988 foi o pilar inicial de uma reprogramação completa do Estado, uma refundação logo dos chamados anos de chumbo; em outros casos as novas constituições contaram com a força inusitada de atores sociais esquecidos historicamente, como os indígenas e as comunidades afrodescendentes em Equador e Bolívia; também, as mudanças políticas na Colômbia, Venezuela e Argentina, se projetaram em novas Constituições e amplas reformas e finalmente, se registrou um deterioro do modelo de Estado que com características neoliberais adaptadas a sociedades periféricas impunha-se a partir da década de 80. 

Destarte, o novo constitucionalismo latino-americano corresponde ao período de surgimento de novos textos constitucionais nesta região do Mundo, bem como, no atual ciclo histórico, ao conjunto de reflexões destinadas à efetivação dos seus conteúdos. Emerge um Direito Constitucional que procura contribuir, a partir da interpretação/aplicação dos princípios e valores constitucionais, a uma concretização de direitos de maior alcance que aquela reproduzida na maior parte do século XX. 

Cumpre de antemão apontar que as possíveis variáveis de um novo constitucionalismo não decorrem da inauguração de novos textos normativos, eles são apenas uma das dimensões do assunto. Por isso o Constitucionalismo regional continua em formação, com polêmicas em torno ao papel das cortes constitucionais e as técnicas de interpretação, com avanços e retrocessos e com forte resistência de elites tradicionais que não vacilam em retornar à proclamação da situação de exceção como fórmula para conter as que consideram transformações inconvenientes. 

É de se reparar, à maneira de exemplo, nos textos de constituições como a brasileira de 1988, que expõe no seu artigo 1º que a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito, fundada na soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político; no texto da Carta da República Bolivariana de Venezuela aprovada por referendo em 15 de dezembro de 1999, que define no seu artigo 2º a organização jurídico-política estatal como a de um Estado Democrático e Social de Direito e de Justiça; registre-se, desde logo, o Texto da Constituição da República del Ecuador de 2008, que consigna no artigo inicial que “[o] Equador é um Estado constitucional de direitos e de justiça, social, democrático, soberano, independente, unitário, intercultural, plurinacional e laico”.

Essas três constituições ostentam um generoso leque de direitos fundamentais. Assim, a Constituição brasileira denomina seu Título II de Dos Direitos e Garantias Fundamentais, para logo desenvolvê-los em cinco capítulos: dos direitos e deveres individuais e coletivos; dos direitos sociais; da nacionalidade; dos direitos políticos e dos partidos políticos.

A Constituição venezuelana, no seu Título III, inicia o percurso dos Direitos Humanos e Garantias e dos Deveres para depois de um primeiro capítulo sobre disposições gerais, tratar Da nacionalidade e da Cidadania; Dos Direitos Civis; Dos Direitos Políticos e do Referendo Popular; Dos Direitos Sociais e das Famílias; Dos Direitos Culturais e Educativos; Dos Direitos dos Povos Indígenas e, finalmente, Dos Direitos Ambientais. 

Por sua vez, a Constituição equatoriana postula no seu Título II, identificado como Direitos, um primeiro capítulo que aborda os princípios de aplicação dos direitos, para logo tratar nos subsequentes dos seguintes: Direitos do Bom Viver, dentre os quais consigna em seções separadas, o Direito à água e à alimentação, o direito ao meio ambiente sadio, comunicação e informação, cultura e ciência, educação, habitat e moradia, saúde, trabalho e seguridade social; no capítulo III se consagram os direitos das pessoas e grupos de atenção prioritária, dentre eles os idosos, jovens e crianças, mulheres grávidas, migrantes e pessoas com deficiência, pessoas com doenças complexas, pessoas privadas da sua liberdade, e a proteção ao consumidor; no quarto capítulo os Direitos das Comunidades, Povos e Nacionalidades; no quinto, os Direitos de Participação; no sexto os Direitos de Liberdade; logo no sétimo os Direitos da Pacha Mama ou Direitos da Natureza, pois a natureza “onde se reproduz e realiza a vida, tem direito a que se respeite integralmente sua existência e a manutenção e regeneração de seus ciclos vitais, estrutura, funções e processos evolutivos”; o oitavo capítulo trata da proteção no âmbito jurisdicional e no último capítulo se consagram as responsabilidades  dos cidadãos dentre as quais se destaca no ítem II a Ama killa, ama llulla, ama shwa, não ser ocioso, não mentir e não roubar. 

A Constituição brasileira de 1988 estabeleceu um sistema de controle de constitucionalidade misto, manteve o Supremo Tribunal Federal como última instância do controle difuso e instância única do controle concentrado e originou figuras de especial interesse como o mandado de injunção, mecanismo a disposição de qualquer pessoa para conter, por via jurisdicional, a inércia do legislativo quando em jogo se encontre a concretização de um direito fundamental.

A Constituição da Colômbia de 1991 consagrou o direito à paz no seu artigo 22, no que deve ser interpretado como a projeção de um mandato aos governantes para a execução de uma política de Estado dirigida à solução do conflito social e armado que lacera o país há mais de seis décadas. 

6. O constitucionalismo contemporâneo. É possível falar de neoconstitucionalismo?
Ao se falar no Constitucionalismo da contemporaneidade parece unânime que o ponto de partida é o período posterior ao final da Segunda Guerra.49 Nele tiveram nascimento os textos constitucionais de Itália (1947) e Alemanha (1949); posteriormente encontramos as Cartas de Portugal (1976) e Espanha (1978). Como já constatamos, na América Latina, com impacto importante dessas referências europeias, são mencionados como exemplos de um Constitucionalismo renovado os textos normativos mais recentes surgidos a partir do final da década de 80. 

As análises sobre o conteúdo e o alcance desse modelo de constituições, assim como das reflexões e práticas jurídicas nelas inspiradas são frequentemente sintetizadas na expressão Neoconstitucionalismo, denotando algo inédito, de novo tipo. Sem embargo, Miguel Carbonell adverte que o  fenômeno ainda é algo não consolidado, em tudo caso, expõe o professor mexicano, faz referencia a duas questões a ser estudadas separadamente: primeiro, a uma serie de fenômenos evolutivos que tem evidente impacto no denominado paradigma do Estado Constitucional; logo, a uma determinada Teoria do Direito, que propugna no passado recente por essas mudanças e que da conta deles em termos positivos.50 

Prieto Sanchís, por sua vez, prefere usar a expressão constitucionalismo dos direitos, para sustentar que o que caracteriza esta etapa é a confluência de duas tradições diferentes de Constitucionalismo, aquela que se desenvolve com as declarações de direitos da França no século XVIII e a que se projeta a partir da decisão Marbury vs Madison nos Estados Unidos. Nas suas palavras, a novidade não reside em nenhum desses traços tomados por separado, senão precisamente na conjugação de ambos “(...) é a convergência de duas tradições constitucionais o que permite conceber à Constituição simultaneamente como um limite ou garantia e como norma diretiva fundamental”.51  Veja-se que nessa perspectiva a junção entre o racionalismo, que na versão de Rousseau implica que o poder constituinte desemboca na supremacia do Parlamento e da Lei, e que na versão americana se corporifica num documento ao qual se lhe reconhece seu status supremo, seriam os pressupostos teóricos neconstitucionalistas.

Comanducci, a seu turno, expõe que os termos Constitucionalismo e Neoconstitucionalismo designam uma dupla acepção. Na primeira delas se refere a uma teoria e/ou ideologia e/ou um método de análise do Direito; na segunda, a elementos estruturais de um sistema jurídico e político, que são descritos e explicados como teoria, ou que satisfazem os requisitos do neoconstitucionalismo como ideologia.52 

Em sentido crítico, Lenio Streck prefere a expressão Constitucionalismo Contemporâneo, identificando com ela uma ruptura com o positivismo jurídico. Por isso rejeita o vocábulo neoconstitucionalismo, que na sua visão acabou por ser identificada com a tese que privilegia a discricionariedade do Judiciário.53 

Sem nenhum demérito para quem utiliza a expressão Neoconstitucionalismo, e sem pretender lançar a última palavra, na nossa exposição nos inclinamos também por Constitucionalismo contemporâneo, que nos parece mais adequada pela continuidade histórica constitucional que reflete, identificando um período de desenvolvimento de tradições, culturas e experiências jurídicas, de convergências, divergências e influências mútuas no terreno da limitação da arbitrariedade e a defesa dos direitos fundamentais. Estamos certamente num período de mudanças, no qual há que identificar os fatores que determinam a evolução constitucional, os conceitos essências, as virtudes e dificuldades das novas técnicas de interpretação, o que realmente pode ser considerado inédito e aquilo que sugere uma releitura do passado.

A síntese dessas mudanças é preocupação de autores como R. Guastini, que enfoca o neoconstitucionalismo como um processo de constitucionalização do ordenamento ao redor do qual gravitam fatores que lhe servem de suporte. Destarte, acolhendo uma sugestão de Favoreu, refere-se a um processo de transformação ao final do qual o ordenamento jurídico resulta totalmente “impregnado” pelas normas constitucionais. Nas suas palavras, um ordenamento jurídico constitucionalizado se caracteriza por uma Constituição extremadamente invasora, intrometida, capaz de condicionar tanto a legislação quanto a jurisprudência e o estilo doutrinal, a ação dos atores políticos, assim como as relações sociais.54 

A seguir avançaremos nos pontos, a nosso juízo, de maior relevância e matéria de debate no Constitucionalismo de nossos dias.

6.1. O pós-positivismo 
Atualmente postula-se uma Teoria do Direito na qual não parece haver espaço para o juspositivismo teórico do século XIX.

No Brasil, nessa perspectiva, L.R. Barroso opina que o pós-positivismo constitui o marco filosófico da nova etapa. Por essa via, sugere que logo da superação histórica do jusnaturalismo - que teve seu auge durante o século XVI aproximando a lei da razão e chegou ao seu apogeu com as constituições escritas e codificadas - e o posterior fracasso do positivismo como filosofia que atrelou o direito à lei e que foi a espécie normativa utilizada para proteger as atrocidades do nazi-fascismo, o pós-positivismo busca ir além da legalidade estrita, para uma interpretação e aplicação do direito com fundamento num teoria da justiça.55 

O posicionamento de Barroso não pode ser desconectado da velha polêmica entre positivismo e  jusnaturalismo, que gira ao redor da relação entre o Direito e a moral. Não é o momento de nos deter nesse debate, de maneira que, como faz convenientemente Carlos Nino para efeitos pedagógicos, diríamos que enquanto o jusnaturalismo sustenta uma conexão intrínseca entre direito e moral, o positivismo jurídico nega esta conexão.56 

Há, entretanto, uma discussão de fundo dentro do próprio positivismo, ligada a sua justificação moral. Como diz Garcia Figueroa, trata-se de estabelecer as razões para ser positivista, normativas ou não normativas. No caso, a independência conceitual do Direito com relação à moral é o tema central. É uma independência de ordem prática ou especulativa?57 

Se o Direito é o que é, e em consequência não se justifica a exigência de uma razão suficientemente convincente para seu reconhecimento, então o risco que se corre é o de fragilizar a própria Ciência do Direito Constitucional, tentando compreender a Constituição completamente à margem da possibilidade de examinar seus fundamentos e suas origens.

6.2. A rigidez constitucional e o controle de constitucionalidade
Como se sabe, a rigidez – por oposição à flexibilidade - supõe que o processo de modificação das normas constitucionais seja resultado de um processo mais dificultoso que o processo de formação das leis ordinárias, de sorte a fazer uma clara distinção entre normas constitucionais superiores e as normas infraconstitucionais que devem obediência às primeiras.

Atualmente as constituições escritas se caracterizam por estabelecer graus de máxima rigidez, notadamente quando se trata de normas princípio e direitos fundamentais. Trata-se de mecanismo de manutenção de uma hierarquia que permite avançar à incontestabilidade desse tipo de normas, viabilizando um regime jurídico próprio que pretende livra-los das ameaças de redução de intensidade ou densidade que podem provir das políticas conjunturais dos governos ou da precariedade da legislação. 

A distinção entre normas constitucionais e infraconstitucionais implica a existência de um mecanismo de fiscalização de constitucionalidade, que como foi mencionado, na tradição dos Estados Unidos se reporta a qualquer juiz e na alemã a uma Corte Constitucional. Existem, todavia, casos nos quais os Estados organizam uma jurisdição constitucional mista, na qual coexistem os dois sistemas. 

Algo deve ser dito ainda, é que nestes casos a lei pode vigorar durante certo tempo ainda que posteriormente seja declarada inconstitucional. O sistema francês, de controle a priori exercido por um Tribunal Constitucional, teoricamente impede que a lei inconstitucional ingresse no ordenamento. Contudo, como ressalta Guastini, os possíveis efeitos inconstitucionais de uma lei nem sempre podem ser determinados, a não ser quando se evidencia um caso concreto.58 

Contudo, como se verá em outro segmento, o trabalho do Tribunal Constitucional deixou de ser exclusivamente de controlador ou legislador negativo para avançar à maior concretização dos enunciados constitucionais. O transfundo desse novo papel é a desconfiança na legislação e, em contrapartida, as possíveis virtudes das decisões das Cortes e em geral do Judiciário para vincular os atores sociais ao cumprimento dos desideratos da Constituição e o prestigio dos seus valores. 

6.3. A supremacia e força normativa da Constituição 
Na perspectiva do Constitucionalismo contemporâneo a Constituição não é, como no passado, condenada a ser um documento retórico e de cunho estritamente político, mas um documento jurídico, de disposições obrigatórias e vinculantes.59  

Nesse sentido, a supremacia da Constituição não é requisito formal de funcionamento sistémico, mas uma questão de substancia. Por outras palavras, a hierarquia que ostenta a Carta se deduz não de um esquema artificialmente sustentando numa norma superior como garantia de seu funcionamento, senão da realidade de que a Constituição reproduz um conjunto de escolhas valorativas e finalísticas, que a tornam marco de referencia e obrigatória obediência para a validade dos atos normativos do sistema que a ela se sujeitam. 

Esse modo de entender a supremacia e a força normativa se revela com a invasão constitucional aos mais diversos campos das relações jurídicas. Por isso não há problema jurídico que não possa ser constitucionalizado, descartando-se a existência de um mundo político separado ou imune á influencia constitucional.60  

6.4. A aplicabilidade direta das normas constitucionais 
Lembra Jose Afonso da Silva que a jurisprudência e a doutrina constitucional dos EUA conceberam a classificação das normas constitucionais em self executing provisions e not self-executing provisions, difundida como disposições autoaplicáveis e disposições não auto-aplicáveis ou não-executáveis por si mesmas.61  

O Constitucionalismo de nosso tempo avança no sentido de considerar que todas as normas constitucionais tem aplicabilidade imediata. De maneira que, até como uma decorrência natural da supremacia e força normativa da Constituição, toda norma constitucional, com independência de fazer remissão à lei para seu desenvolvimento futuro, da sua estrutura ou conteúdo normativo, é susceptível de produzir efeitos jurídicos diretamente, especialmente no terreno dos princípios e de qualquer direito fundamental, incluindo, logicamente, os direitos sociais, que para alguns teóricos nunca contaram, numa visão empobrecida, com o caráter de fundamentais. . 

6.5. A interpretação constitucional: “sobreinterpretação” ou “interpretação a simili” da Constituição e interpretação das leis 
Um dos traços mais notórios do neoconstitucionalismo é que a interpretação constitucional, como consequência do processo de constitucionalização do Direito, apresenta características peculiares. O ponto de partida consiste em que Constituição é um valor em si mesmo a ser defendido.62 

Assim, para as Cortes Constitucionais a interpretação não pode se reduzir à declaração ou descrição de um sentido predeterminado pelo legislador, senão que é uma questão axiológica, que lhe impõe a construção de uma norma que resolve o dilema jurídico. 

As referencias lógicas do intérprete, tanto no campo da doutrina quanto no da jurisprudência para a elaboração dessa norma, são os princípios constitucionais. A característica desse tipo de mandamento é sua abstração e generalidade. Os princípios, nas palavras de Alexy, são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes. Princípios são, por conseguinte, mandamentos de otimização.63  Todavia, a Constituição não prevê colisões ou conflitos entre eles nem o patamar mínimo de cumprimento do seu conteúdo. Em tais condições a argumentação, caso a caso, para estabelecer o princípio prevalecente, torna-se um imperativo.

Não obstante, também neste plano, há de se fazer referencia a duas questões de hermenêutica: a primeira se relaciona com a ideia de que a Constituição deve ser interpretada de maneira extensiva e não restritivamente. A interpretação literal, (pelo argumento a contrário) inevitavelmente, pela incapacidade de num texto normativo abordar todos os campos da vida social, conduzirá a que uma boa parte da realidade não seja atingida pelos mandamentos constitucionais; por outro lado, a interpretação extensiva (pelo argumento a símile) permite a sobreinterpretação, isto é, a extração de inúmeras normas implícitas idôneas para regular qualquer aspecto da vida social e política. Como diz Guastini, quando a Constituição é sobreinterpretada não ficam espaços vazios de Direito Constitucional e não há questão de legitimidade constitucional da qual se possa dizer que seja somente uma political question, de forma que por essa via possa escapar do controle de constitucionalidade do juiz.64 

Finalmente, e ainda no campo hermenêutico, se encontra a relação entre lei e Constituição. Se de um texto normativo podem ser extraídas várias normas, deve o intérprete preferir a interpretação que harmonize a lei com a Constituição, elegendo o significado que evite a contradição entre as duas. É a chamada interpretação “conforme” que conserva a lei projetando-a em sentido constitucional. 

6.6. A aplicação das normas constitucionais às relações entre particulares
Na ótica liberal clássica, a Constituição limita o Poder Público, mas não regula as relações entre os particulares. Assim determinaram-se as áreas do Direito Público e do Direito Privado, vigorando, nesta última, a autonomia da vontade. Contudo, no Constitucionalismo de hoje a Constituição serve de moldura para todas as relações sociais, incluindo as áreas tradicionalmente adstritas ao Direito Privado, que passaram também a ser constitucionalizadas. 

Em outra perspectiva pode-se também arguir a necessidade de outorgar força expansiva e onipresente aos direitos fundamentais, de maneira a fortalecer os particulares, tornando-os resistentes aos ataques de agentes diversos do Estado. Assim, delimita-se um espaço que não admite franquias quando se trata de exercer direitos ameaçados na horizontalidade das relações guardadas pelo ordenamento jurídico.

6.7. As Cortes Constitucionais e os órgãos de representação popular
Como temos afirmado, o Constitucionalismo de nosso tempo se opõe à velha tese de que os dispositivos da Constituição são meras recomendações para o Executivo e o Legislativo.

Classicamente a tais órgãos, em virtude de formalmente ostentar o mandato representativo, lhes foi conferida uma particular discricionariedade para que a partir de argumentos políticos, resultantes da avaliação previa de resultados e impactos na coletividade, elaborassem comandos normativos e administrassem as relações entre particulares e Estado. 

Entretanto, contemporaneamente os mandamentos constitucionais direcionam os fins específicos das ações desses órgãos, reduzindo a margem de opções e obrigando em alguns casos a um sentido predefinido, que lhes ordena criar instituições, promover políticas públicas e fornecer as condições para a materialização dos direitos. Para tanto a Constituição distribui competências e responsabilidades.  

Esses parâmetros são verdadeiras condições jurídicas que permitem aferir a razoabilidade das ações do Executivo e do Legislativo, bem como detectar e dimensionar o alcance das eventuais omissões. No caso, tendo em vista que a defesa da Constituição cabe aos juízes e tribunais constitucionais, é nítida uma maior presença e incidência das suas decisões na esfera das deliberações políticas. Por isso, a autocontenção das Cortes é tratada como exceção, devendo-se cuidar, é claro, de ingerências que atropelem as esferas reservadas estritamente aos órgãos de representação popular e os atos interna corporis, que fazem parte da intimidade estrutural de cada órgão. 

6.8. O tema da interpretação por princípios e a discricionariedade dos juízes
Temos visto que no campo hermenêutico o papel dos princípios é essencial, pois são balizadores do exercício de construir caso a caso a norma que coloca fim ao dilema. Entretanto, também advertimos que os princípios não disciplinam sua aplicação. Por essa causa, o trabalho do intérprete pode-se tornar dificultoso, especialmente quando entram em contradição no caso concreto, obrigando a um balanceamento dos seus conteúdos.

Assim, se especialmente para o juiz a atenção aos princípios no processo interpretativo é um imperativo, o sopesamento ou procura desse balanço é um exercício que a ele fica restrito, o que conduz a severa críticas. Alexy pontua que as objeções mais frequentes consistem em que onde começa o sopesamento termina o controle por meio de normas e métodos, abrindo-se espaço para o subjetivismo e o decisionismo dos juízes.65 

Daí que quando L. Streck analisa criticamente algumas decisões do Supremo Tribunal Federal brasileiro, se preocupe com fortes razões por distinguir entre o fenômeno da judicialização da política e o ativismo: 

“(...) a primeira acontece porque decorre de (in) competências de poderes e instituições, abrindo caminho-espaço para demandas das mais variadas junto ao Judiciário; a segunda é, digamos assim, “behavorista”, dependendo da visão individual de cada julgador. A judicialização pode ser inexorável; o ativismo, não. O ativismo não faz bem à democracia”.66 

É importante reconhecer, no entanto, que o problema é em alguma medida paralelo à reação ao dogma da sujeição do juiz à lei positiva, da qual derivava uma aplicação mecânica do seu conteúdo. Portanto, do que se trata não é de reeditar estilos de interpretação que não conseguem mais lidar com as características da maior parte dos conflitos do presente, senão de debater a partir de uma dogmática que valorize os princípios – e até trabalhe convenientemente com as regras – determinados na Constituição.

Nesse debate distingue-se uma perspectiva política e uma teórica. Na primeira se inscreve a superação do entendimento do postulado Gesetz ist Gesetz - a lei é a lei – incutido na visão alemã de um juiz submisso ao Direito, que é uma decorrência natural da superação do paradigma legislativo.

Veja-se que os problemas não eram tão eloquentes quando, ainda que fundada em princípios, a Constituição orientava a tradição legislativa. As normas do legislador, como assentado pela Corte dos EUA, tem presunção de constitucionalidade. Mas, quando a principiologia se conduz ao plano da interpretação do juiz, outrora permanente atrelado ao dizer da lei, então a questão tornasse especialmente problemática. 

Se, como diz Prieto Sanchís, a Constituição substantiva ou principiológica entrega razões justificadoras distintas e tendencialmente contraditórias, e isso vale para o legislador e também para o juiz,67 então a questão se reporta para um e para outro ao exame de razoabilidade ou racionalidade na interpretação que se faz de cada princípio em cada caso. No caso do juiz, aos métodos utilizados – sistemático, histórico, teleológico, lógico – aos princípios constitucionais estampados como baluartes da decisão – igualdade, legalidade, dignidade da pessoa humana e tantos outros – aos princípios da dogmática constitucional – v. g. unidade e supremacia da Constituição, máxima efetividade, proibição de retrocesso dos direitos fundamentais, dentre outros – em suma, ao respeito ao projeto arquitetado pelo constituinte. 

Logicamente, isso nos conduz a um aspecto que não pode ser subestimado e constitui o lado teórico do problema: consiste em que o juiz não é neutro e, portanto, não há uma interpretação/aplicação da Direito despojada de uma ideologia. Por isso, a argumentação, é dizer, a exposição de razões amparadas pelo ordenamento constitucional é o indicativo a levar em conta para não cair no pragmatismo interpretativo ou na arbitrariedade, especialmente quando inevitavelmente cair-se-á numa hierarquia circunstancial de princípios e a situação se incline para não apenas uma única decisão ao caso. 

Ainda assim, existe o receio em torno à possível substituição da lei pela jurisprudência e a potencialização de um indesejado ativismo judicial, uma interpretação “moral” da Constituição que abale a segurança do direito.

O debate é extremamente denso e nos reportamos aqui a breves considerações no intuito de focar seus aspectos mais relevantes. 

6.9. Os direitos fundamentais
O Constitucionalismo da contemporaneidade se projeta assumindo que a dignidade da pessoa humana constitui matriz dos direitos fundamentais, tanto no plano subjetivo – possibilidade do ser humano realizar escolhas dentro de um cenário de liberdade – como no objetivo – condição derivada da satisfação de necessidades mínimas permitir o pleno desenvolvimento da sua  potencialidade como ser humano.

O especial destaque dos direitos fundamentais se revela pela sua constitucionalização formal o que os torna diretamente vinculantes, de aplicabilidade imediata e de necessária observância em qualquer operação de interpretação e aplicação do Direito. 

Nesse sentido, há duas questões a especificar. Primeiro, que os direitos fundamentais não se dirigem apenas a disciplinar determinada esferas públicas da relação entre homem e poder, senão que, como já foi registrado - se tornam operacionais em todo tipo de relações jurídicas, inclusive nas relações na esfera privada; em segunda instância, que nem sequer aqueles direitos que exigem uma interpositivo legislatoris podem ser considerados sem força jurídica suficiente como para não ser aplicados a partir da leitura da Constituição.68

Entretanto, o debate contemporâneo se realiza especialmente no campo da efetividade dos direitos sociais. Com efeito, A trajetória do Estado social de Direito tem sido interrompida por um discurso insistente e especialmente destoante das aspirações de satisfação das necessidades humanas: as teses neoliberais que representam uma aspiração de retorno aos postulados do liberalismo clássico, sem limites nem controle, acomodado ao século XXI.

Essa discussão sobre o modelo econômico é indissociável do Constitucionalismo porque se reverte no modelo de Estado que se pretende criar. Com efeito, F. Hayek, talvez o primeiro dos teóricos neoliberais, sustenta que o intervencionismo do Estado social dirigido à promoção do bem-estar e à tutela dos direitos sociais somente pode desembocar na restrição da liberdade humana e em um caminho de servidão.69 

Por isso, no cerne teórico do neoliberalismo se apresenta a contraposição entre liberdade e igualdade. Nela o avanço igualitário supõe corroer a liberdade e atentar contra a prosperidade das pessoas. No entanto, esse âmago não é debatido com especial cuidado, a ele se antepõe a lógica econômica e a filtragem sobre a eficiência do privado por sobre o público. Não interessa a discussão no plano da ética ou da axiologia nas quais se funda o Constitucionalismo, é muito mais fácil optar por reformar constituições e reduzir o alcance dos direitos, seja pela lei, pelos “ajustes fiscais” ou por teses como a “reserva do possível”. 

Por óbvio, não se pretende, neste ponto, justificar um populismo jurídico que não compreende que o Estado social supõe atender à questão econômica com especial prioridade. Mas tampouco há como ceder a duas questões que são perigosas para o Constitucionalismo de nossos dias, apontadas dentre outros autores por Pérez Luño: a primeira, que afirma que somente podem-se manter como direitos aqueles para os quais existem meios econômicos para sua satisfação, falácia da Lógica de Palmström, ao teor da qual uma coisa ou um comportamento “deve ser assim porque assim é”; a segunda, que considera que o desenvolvimento histórico converge inexoravelmente na economia de mercado e na democracia liberal.70 

O Constitucionalismo convive com essas teses que, como aponta Guerra Filho, apresentam um caráter profundamente reacionário, deslocando a consagração de direitos fundamentais para normas programáticas, sem aplicação direta e imediata.71 Em primeiro lugar os direitos não podem ser contingenciados aprioristicamente, embora a realização do direito possa ficar supeditada, de fato, a condições de possibilidade econômica. Aceitar o contrário significa retirar a perspectiva de efetivar direitos, numa visão conservadora e mais que isso, de porta aberta ao retrocesso. Por essa via perde-se a dimensão axiológica e teleológica e se passa friamente á lógica econômica, nos marcos da profunda desigualdade que presenciamos na atualidade; em segundo lugar, a economia de mercado e a democracia liberal, são uma opção econóômica e política, não são fenômenos naturais, mas construções humanas. Não há como alicerçar o sucesso do Constitucionalismo ou dos direitos fundamentais a essas opções, pois a sustentação de ambos se encontra na valorização do ser humano, em sentido universal. 

6.10. Constituição e processo
Na atual fase de desenvolvimento do Constitucionalismo as mudanças no terreno processual também se tornaram tão evidentes que alguns autores se referem ao neoprocessualismo como vertente paralela à constitucionalização do Direito.72 Embora seja possível afirmar que Constituição e processo sempre foram elementos de uma relação que, como se desprende da nossa exposição, emerge com a Charta Magna de 1215 quando da consagração da expressão Law of the Land, posteriormente passou a ser consignada como Due Process of Law, e foi explorada enriquecedoramente pela jurisprudência da Corte dos Estados Unidos, hoje se acentua o caráter constitucional das garantias do processo, que são garantias, na verdade, em favor das pessoas no interior dos processos. 

Por isso, em tempos de constitucionalização do direito, aliado a uma orientação principiológica da Constituição, o fenômeno origina várias consequências. A primeira delas é uma releitura de cada instrumento, ação ou recurso, através dos quais se exige o reconhecimento, declaração ou satisfação dos direitos, especialmente os fundamentais, orientada pela força normativa da Constituição e a hermenêutica dirigida à concretização. 

Sugere-se uma descodificação não apenas no sentido de consagrar na Constituição as mais variadas garantias processuais no campo civil, penal e administrativo. Isso, na verdade, já vem acontecendo há muito tempo. O que representa uma novidade é que em virtude da interpretação fundada em que o postulado de acesso à justiça representa algo muito além da possibilidade de obter uma decisão qualquer, pois se trata de uma decisão fundada em pressupostos de justiça que a própria Constituição alberga, então a construção da norma de decisão pelo juiz implica considerar as exigências atuais da democracia e o resultado – a norma de decisão - deve ser motivada com fundamento em princípios constitucionais. 

Sendo assim, procura-se um novo status activus processualis, concebido como o a participação ativa de cada pessoa e sua responsabilidade nos procedimentos que a afetam e que se revela no plano dos direitos fundamentais no acolhimento de formas de participação dinâmica e ativa por parte dos interessados nos procedimentos tendentes à formação de atos jurídicos. Uma amostra dessa possibilidade é a utilização renovada da figura do amicus curiae, que tem sido essencial para a solução de casos difíceis. 

Muito embora um setor da doutrina possa enxergar o sacrifício de formas processuais nessa visão, não necessariamente deve haver um choque entre os rituais e os fins processuais. O processo exige a observância das formas, especialmente quando estas tem o caráter de normas de ordem pública. Contudo, sua rigidez não pode estar por cima da obtenção do valor justiça. Por outras palavras, formas não podem ser obstáculos para atingir a finalidade processual substantiva. 

Nesse sentido, valorizar o procedimento é também dimensionar adequadamente as garantias processuais consagradas e desenvolvidas pelo Constitucionalismo ao longo do tempo e das quais não se desvincula, senão que insiste em defendê-las nesta fase como pressuposto importante para barrar interesses oriundos de estruturas de dominação, infelizmente reproduzidas no seio da sociedade e que ameaçam permanentemente incidir no desfecho das lides.

Notas
1 Veja-se o artigo: COMANDUCCI, Paolo. Formas de (neo)constitucionalismo: un análisis metateórico. Neconstitucionalismo(s), pp. 75-98.

2 VERDÚ, Pablo Lucas. Teoria de la Constitución como ciencia cultural, p. 23. 

3 Assim, Reis Novais conclui, lembrando a Jellinek, que “as modernas teorias do Estado de Direito formuladas por Mohl, Stahl e Gneist não acrescentaram qualquer nova nota ás doutrinas de Platão e Aristóteles sobre o Estado legal”. Consulte-se: NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma teoria do Estado de direito, p. 21. 

4 Como bem expressa Camargo Mancuso, “[a] quem não esteja mais familiarizado com as relações entre Roma e seus cidadãos, pode causar certa espécie o fato de que naquele tempo, em que a noção de ‘Estado” ainda não estava bem delineada, já houvesse um espírito cívico tão desenvolvido a ponto de um cidadão poder dirigir-se ao magistrado buscando a tutela de um bem, valor ou interesse que, diretamente, não le concernia, mas sim à coletividade, como as rei sacrae, as rei publicae. A perplexidade, porem se desvanece quando se considera que, justamente pelo fato de a noção de ‘Estado’ não estar bem definida, o que havia era um forte vínculo natural entre o cidadão e a gens. Por outras palavras, a falta de um ‘Estado’ bem definido e estruturado, era ‘compensada’ com uma noção atávica e envolvente do que fosse o ‘povo’ e a ‘nação’ romanos”. Consulte-se a obra: MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação popular, p. 39 e ss. 

5 ROMANO, Santi. Princípios de direito constitucional geral, p. 42. 

6 VERDÚ, Pablo Lucas. Teoria de la Constitución como ciencia cultural, p. 23. 

7 NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma teoria do Estado de direito, pp. 47-48. 

8 ROMANO, Santi. Princípios de direito constitucional geral, pp. 42-43. 

9 ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil, p. 09. 

10 Sobre os Commentaries de Blackstone e a evolução do Due process of Law e o surgimento desses vários documentos sugere-se a leitura da obra de Siqueira Castro: O devido processo legal e a razoabilidade das leis na nova Constituição do Brasil, pp. 7-33.

11 PAINE, Thomas. Das Constituições. Revista sub judice, nº 12, pp. 139-140.

12 Nesse sentido: ZOLLER, Élisabeth. Esplendores e misérias do constitucionalismo. Revista sub judice, nº 12, p. 3; também Garcia de Enterria para quem o Constitucionalismo dos Estados Unidos incorpora a tradição do lex inmutabile e, para fazer efetiva essa superioridade, técnicas concretas do common law; Assim, existe a formalização de um documento solene desse fundamental law e junto a ela a técnica da judicial review, que provêm do common law inglês, de sua posição precisamente central como “Direito Comum” a partir da qual pode exigir contas aos statutes, às leis como normas puramente singulares ou excepcionais. Consulte-se: GARCIA DE ENTERRIA, Eduardo. La Constitución y el Tribunal Constitucional, pp. 123-124.

13 PAINE, Thomas. Das Constituições. Revista sub judice, nº 12, p. 139. 

14 ZAGREBELSKY, Gustavo. História y Constitución, p. 33. 

15 A mitologia da Corte, como diz García de Enterria, é inesgotável e sua aceitação geral está baseada inteiramente na judicial review, que não foi atribuída expressamente pela Constituição, senão propriamente usurpada ou, ao menos, auto-atribuída (GARCIA DE ENTERRIA, Eduardo. La Constitución y el Tribunal Constitucional, p. 127).

16 ZOLLER, Élisabeth. Esplendores e misérias do constitucionalismo. Revista sub judice, nº 12, p. 11. 

17 Consultar: ROTUNDA, Ronald. O direito de dissidência e a dívida dos Estados Unidos com Heródoto e Tucídides. Revista de estudos institucionais, v. 1, pp. 104-143.

18 T. Frosini comenta que em 10.12.1988 o Presidente Ronald Reagan firmou o Civil Liberties Act, com o qual se estabeleceu a indenização de 20.000 dólares para cada um dos 80.000 sobreviventes dos campos de internação criados durante a Segunda Guerra. Consulte-se: El Estado de Derecho se há detenido em Guantánamo. Revista española de derecho constitucional, nº 76, p. 39. 

19 MARSHALL, John. Marbury v. Madison. Revista sub judice, nº 07-09, pp. 145-148. 

20 CASTRO, Siqueira. O devido processo legal e a razoabilidade das leis na nova Constituição do Brasil, pp. 34-37. 

21 Wall 36. 21 L. Ed. 394. Caso Slaughter-House Cases. Ver Siqueira Castro, Op. cit., p. 49. 

22 Sobre o ponto, Pietro Alarcón (Processo, igualdade e justiça. RBDC, nº 2, pp. 179-181.

23 A imprensa dos Estados Unidos chamou ironicamente a 4 juízes da Corte de “Quatro Cavalheiros” comparando-os aos 4 Cavaleiros do Apocalipse por impedirem a aplicação das medidas de Roosevelt.

24 Para uma visão geral do tema: ZOLLER, Élisabeth. Esplendores e misérias do constitucionalismo. Revista sub judice, nº 12, p. 6. 

25 ARAÚJO, António. Self-restraint In Supremo Tribunal Federal dos E.U.A. Revista sub judice nº 12, pp. 194-195. 

26 RAMOS SOUSA, J. Governo dos Juízes In Supremo Tribunal dos E.U.A. Revista sub judice nº 12, p. 183. 

27 Supreme Court of the United States. Sentença de 18.05.1896. 163.U.S. 537. Plessy v. Fergusson.   

28 Supreme Court of the United States. Sentença de 31.05.1955, 349 U.S. 294. Brown v. Board of Education of Topeka et all.  

29 Idem, 438, U.S. 265. Decisão de 28.06.1978. 

30 Idem, 448, U.S. 448. Decisão de 02.07.1980.  

31 Supreme Court of the United States. Sentença de 17.06.1957, 354 U.S. Watkings v United States.

32 Supreme Court of the United States. Sentença de 17.06.1057, 354, US, Yates v. United States.  

33 FROSINI, Tommaso Edoardo. El Estado de Derecho se ha detenido en Guantánamo. Revista española de derecho constitucional, nº 76, p. 42.

34 Sobre o ponto, em referência às questões levantadas por von Stein, Böckenförde e Stern sobre o Estado de Direito alemão, consulte-se: NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma teoria do Estado de Direito, p. 37. 

35 MAYER, Otto. Le droit administratif allemand, p. 81. 

36 ARENAS, Pedro Agustín Diaz. Estado y tercer mundo: el constitucionalismo, p.149. 

37 Sobre o tema em particular da soberania e sua relação com o constitucionalismo, sugere-se a leitura de François Borella. Soberania, supremacia e reparto de poderes. Estado, nación y soberania, pp. 23-44.  

38 NOVAIS, Jorge Reis. Op. cit., p. 33. 

39 BARKER, Ernest. Social contrat, p. 12. 

40 ARENAS, Pedro Agustín Diaz. Estado y tercer mundo: el constitucionalismo, p. 150. 

41 CONSTANT, Benjamin. Discurso sobre  la libertad de los antiguos comparada con la de los modernos. Revista de estudios públicos, nº 59, pp. 51-68.

42 NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma teoria do Estado de Direito, pp. 35-36. 

43 A explicação para a adjetivação nacional parece estar atrelada à necessidade dos franceses reconhecer a língua como fator de unidade. Contudo, Diaz Arenas expressa, em outra perspectiva que a ideia era negar o vocábulo povo, que na visão de Montesquieu corrompia a democracia porque supunha poderes ilimitados. (ARENAS, Pedro Agustín Diaz. Estado y tercer mundo: el constitucionalismo, p. 160). A explicação do autor parece plausível quando se observa que nos EUA preferiu-se a expressão people, que designa o povo, como elemento revestido de certa pluralidade e que nega essa tradição da nobreza europeia. "É a expressão We the people (...) a primeira na Constituição dos Estados Unidos".  

44 A ideia de Rousseau de lei como vontade geral é uma das questões mais polêmicas ainda hoje, posto que pressupõe uma legitimidade que nem sempre é obtida a partir dos mecanismos eleitorais tradicionais. 

45 GRIMM, Dieter. Jurisdição constitucional e democracia. Revista de direito do Estado, ano 1, nº 4, pp. 03-22. 

46 Sobre a polêmica entre Kelsen e Schmitt consulte-se: GRIMM, Dieter. Jurisdição constitucional e democracia. Revista de direito do Estado, ano 1, nº 4, p. 04.

47 GARCIA DE ENTERRIA, Eduardo. La Constitución y el Tribunal Constitucional, pp. 131-133. 

48 TORRES IRIARTE, Alexander. El contexto pre-independentista en Latinoamérica y el Caribe. Prólogo à obra primeras Constituciones. Latinoamérica y Caribe, pp. IX – XXXI.  

49 Nesse sentido, por exemplo, Rubio Lorente (Constitucionalismo. Temas de Direito Constitucional). Também Miguel Carbonell (Nuevos tiempos para el constitucionalismo. Neoconstitucionalismo(s), pp. 09-12). 

50 CARBONELL, Miguel. Nuevos tiempos para el constitucionalismo. Prólogo à obra Neocosntitucionalismo(s), pp. 9-12.

51 PRIETO SANCHÍS, Luis. El constitucionalismo de los derechos. Revista española de derecho constitucional, nº 71, pp. 48-49.

52 COMANDUCCI, Paolo. Formas de (neo)constitucionalismo: un análisis metateórico. Neconstitucionalismo(s), p. 75. 

53 Consulte-se a obra: STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso, p. 35 e ss. 

54 GUASTINI, Riccardo. La “constitucionalización” del ordenamento jurídico: el caso italiano. Neoconstitucionalismo(s), p. 49. 

55 BARROSO, Luis Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito. Neoconstitucionalismo, pp. 51-91. 

56 NINO, Carlos. Introducción al análisis del derecho, p. 18.

57 GARCÍA FIGUEROA, Alfonso. Ser o no ser normativo. Un dilema para el positivismo jurídico. Teoria do direito neoconstitucional, pp. 79-101. 

58 GUASTINI, Riccardo. La “constitucionalización” del ordenamento jurídico: el caso italiano. Neoconstitucionalismo(s), p. 52. 

59 BARROSO, Luis Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito. Neoconstitucionalismo, p. 55.

60 PRIETO SANCHÍS, Luis. El constitucionalismo de los derechos. Revista española de derecho constitucional, nº 71, p. 56.

61 SILVA, Jose Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais, p. 73.

62 Nesse sentido Paolo Comanducci [Formas de (neo)constitucionalismo: un análisis metateórico. Neconstitucionalismo(s)], com fundamento em M. Dogliani, pp. 84-85.  

63 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais, p. 90.

64 GUASTINI, Riccardo. La “Constitucionalización” del ordenamento jurídico. Neoconstitucionalismo(s), pp 54-55. 

65 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais, p.164. 

66 STRECK, Lenio Luiz. O STF e o “pomo de oro”: contramajoritarismo ou não? Aprender Direito, pp. 178. Na obra Verdade e Consenso, Streck denuncia que denomina de panprincipiologismo ou prática de elaboração discricionária e arbitrária de princípios (p. 50). No mesmo sentido, Comanducci alerta que essa generalidade dos princípios terminou por conduzir a uma discricionariedade na qual os juízes decidem fazendo referencia a suas próprias concepções de justiça [Formas de (neo)constitucionalismo: un análisis metateórico. Neconstitucionalismo(s), p. 91]. 

67 PRIETO SANCHÍS, Luis. El constitucionalismo de los derechos. Revista española de derecho constitucional, nº 71, p. 55.

68 PRIETO SANCHÍS, Luis. El constitucionalismo de los derechos. Revista española de derecho constitucional, nº 71, p. 51. 

69 F. Hayek. Caminho da servidão. 

70 PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. Derechos humanos, Estado de Derecho y Constitución, pp. 631-632. 

71 GUERRA FILHO, Willis Santiago. A norma constitucional e sua eficácia (diante do neoconstitucionalismo e de uma teoria fundamental do direito). Neoconstitucionalismo, pp. 129-142. 

72 CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo. Revista do programa da pós-graduação em direito da Universidade Federal da Bahia, nº 17, pp. 93-130. 

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por Pietro de Jesús Lora Alarcón

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