A hoje consolidada teoria da desconsideração da personalidade jurídica despontou no cenário jurídico internacional pela primeira vez com o julgamento, pela House of Lords inglesa, do caso Salomon v. Salomon & Co. Ltd. em 1897, situação em que, embora reconhecida pelo julgador primário a possibilidade de se ultrapassar a autonomia patrimonial da sociedade constituída em descompasso com a intenção do Companies Act de 1862, houve a reforma da decisão sob o fundamento de que, do ponto de vista estritamente formal, não havia ilícito perpetrado.
O termo desconsideração inversa da personalidade jurídica (em inglês, “reverse piercing of the corporate veil” ou, simplesmente, “reverse piercing”), por seu turno, não obstante exista precedentes que mencionam algumas de suas características clássicas remontando ao ano de 1929, foi utilizado pela primeira vez em 1974, durante o julgamento do caso Kingston Dev. Co. v. Kenerly pela corte de apelação da Geórgia, e tem como objetivo precípuo o afastamento da autonomia patrimonial da sociedade a fim de responsabilizá-la por obrigações pessoais de seus sócios.
Já no Brasil, deve-se ao acórdão de relatoria do ministro Manoel de Queiroz Pereira Calças, do Tribunal de Justiça de São Paulo, no julgamento do Agravo de Instrumento 1198103-0/0, em 2008, a primeira aplicação do instituto da desconsideração inversa.
Na oportunidade, definiu-se a possibilidade de responsabilização de duas das maiores sociedades do ramo de revenda de automóveis na América Latina por obrigações pessoais de seu sócio, isto é, desconsiderou-se a personalidade da pessoa natural para atingir o patrimônio das pessoas jurídicas, já que, à luz do art. 50 da Lei 10.406/02, estavam presentes no caso os requisitos autorizadores da desconsideração clássica.
Com a decisão de Pereira Calças, apelidado à época pela imprensa de “Henry Ford brasileiro”, abriram-se finalmente as portas para a importante discussão sobre a possibilidade de aplicação do instituto da desconsideração inversa no ordenamento brasileiro, possibilidade esta que rapidamente foi reconhecida pelos tribunais e que, mais recentemente, foi definitivamente normatizada com a entrada em vigor do novo Código de Processo Civil (Lei 13.105/15).
Com efeito, a partir da vigência do CPC de 2015 foram esclarecidas definitivamente algumas questões que geravam certa controvérsia, como o cabimento da desconsideração, seja ela clássica ou inversa, em todas as fases do processo, desde que requerida pela parte interessada ou pelo Ministério Público, o que implica também na certeza de que o procedimento será incidental, isto é, sem a necessidade de autuação em processo distinto.
Contudo, ao mesmo tempo em que se põem pedras sobre algumas questões processuais controversas, ganham força outras discussões bastante importantes, como é o caso dos cada vez mais frequentes requerimentos de desconsideração inversa fundados na suposta existência de grupos econômicos de fato, que visam a atingir o patrimônio dos outros componentes de um grupo econômico.
Sobre essa questão, ainda que a legislação civil seja inexorável ao prever os requisitos para a desconsideração em seu art. 50, é importante observar que a jurisprudência dos tribunais estaduais vem admitindo a possibilidade de responsabilização de sociedades componentes de um mesmo grupo econômico por obrigações de um de seus membros, mesmo que, por vezes, às custas de argumentos frágeis para o reconhecimento da formação de grupos econômicos de fato.
Fato é que a possibilidade de atingir o patrimônio não só da sociedade diretamente controlada pelo sócio devedor, como também de outras sociedades que, por algum vínculo societário, mesmo que ínfimo, possam ser eventualmente consideradas integrantes de um mesmo grupo econômico, tende a gerar implicações significativas no mercado. Isso porque, de certa forma, há um compartilhamento de risco entre essas empresas que podem vir a ser arrastar indevidamente para conflitos dos quais sequer têm conhecimento prévio.
Neste ponto, talvez a mais importante alteração introduzida pelo CPC atual seja o inequívoco reconhecimento pelo legislador da indispensabilidade de se assegurar o contraditório e a ampla defesa no julgamento do incidente, posto que somente assim é possível assegurar uma formação adequada do convencimento do magistrado acerca da presença dos pressupostos autorizadores da desconsideração, disciplinados na legislação específica.
Tal fato, inclusive, transborda o conteúdo do Direito Civil e Empresarial propriamente ditos e acaba por afetar outras importantes áreas, como o Direito do Trabalho e do Direito do Consumidor, onde historicamente há certa flexibilização do contraditório a fim se resguardar princípios norteadores como a celeridade, informalidade e efetividade.
No entanto, em que pese exista sim a necessidade de se observar tais princípios em razão de todo o interesse público envolvido e em que pese também o fato de que continuarão a surgir discussões sobre a possibilidade de decretação ex oficio da desconsideração da personalidade jurídica — tanto em sua modalidade clássica quanto na inversa —, não há que se falar em prejuízo para o processo ou mesmo para as partes, principalmente em se tratando de garantias constitucionais.
No contexto do Direito Societário, é seguro afirmar que essas confirmações e mesmo modificações introduzidas pelo CPC de 2015 poderão vir a impactar de certa forma — para melhor, acreditamos — as operações de planejamento patrimonial e sucessório, que vêm crescendo recentemente. Isso porque, com a clara possibilidade de se atingir os bens de uma sociedade em função de dívidas de seus sócios, sejam eles pessoas físicas ou jurídicas, criam-se novas barreiras a reorganizações cujo objetivo único é a fraude contra credores.
De outro lado, uma vez que o novo CPC consagra a necessidade de observância do contraditório e da ampla defesa nos procedimentos de desconsideração e, mais, que delimita claramente a possibilidade aplicação aos casos em que presentes os requisitos legais objetivos — quais sejam, o abuso da personalidade jurídica ou a confusão patrimonial —, ganham força as operações levadas a cabo por pessoas de boa-fé, já que se mitiga o risco de prolação de decisões apressadas e desarrazoadas que, invariavelmente, geram prejuízos irreversíveis.
Com o novo regramento, portanto, há terreno fértil para as operações de planejamento, que, relembramos, são legais e prerrogativas do cidadão, que pode se valer de quaisquer mecanismos existentes a fim de melhor gerir os seus próprios bens e assegurar a preservação dos seus negócios, com maior economia tributária.
por Gerson Stocco de Siqueira é sócio-fundador do escritório Gaia Silva Gaede Advogados no Rio de Janeiro e atua na área de Direito Tributário e Societário. É professor, pós-graduado em Auditoria e Controladoria pela Fundação Oswaldo Aranha, bacharel em Direito pela Faculdade Brasileira de Ciências Jurídicas e bacharel em Contabilidade pelo Centro Universitário da Cidade do Rio de Janeiro.
Robson Augusto da Silva Junior é advogado do escritório Gaia Silva Gaede Advogados, especializado em Direito Societário.
Fonte: Conjur
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