Os historiadores do direito ou os arqueólogos jurídicos dizem que em Roma houve um tempo em que não se distinguia a Lex (Lei dos homens) da Fas (Lei divina)
Nas sociedades mais antigas, os sumos sacerdotes, quase sempre, como ocorreu, inclusive, com os papas, empolgaram o poder político. Estado e religião viviam amalgamados. Os preceitos morais estavam embutidos nos mandamentos da religião, que, frequentemente, continham códigos jurídicos. Os Dez Mandamentos, com o “não matarás”, “não roubarás”, “não desejarás a mulher do próximo”, já não são codificação jurídica? O “honrarás pai e mãe” denota a indução da moral utilitária. Entre os humanos “prestantes”, é preciso cuidar e venerar os velhos “imprestáveis”. Onde falha o amor solidário reentra o dever moral. Confúcio fez da veneração aos idosos o pilar da moral chinesa clássica.
O direito é mais prático. A sanção dá-se aqui, agora. Tira-se a vida, a liberdade, os direitos, o dinheiro dos infratores que desobedeceram as suas prescrições. O direito tampouco se preocupa com os dramas de consciência. As intenções, em si, são irrelevantes, pois o que lhes interessa, verdadeiramente, são as condutas humanas, as prescritas e as proibidas. O direito descreve condutas e prescreve os efeitos que delas podem advir. Faz isso o tempo todo, em todos os tempos. Planifica instituições e comportamentos humanos, regendo o convívio social.
Freud, com a sua notável intuição em compreender o homem como id (o homem que busca prazer e satisfação a partir dos impulsos de sua estrutura biopsíquica) e como ego (o homem educado que concilia os impulsos com as conveniências comportamentais que lhe foram introjetadas pela educação familiar, moral e religiosa — superego), penetrou profundamente na alma humana, tão machucada pelos quereres do corpo e pelas proibições sociais, morais e religiosas. Pode até ter desnudado a hipocrisia moral, iniciando a análise do inconsciente humano, e se apiedado do homem, colhido nas malhas das organizações sociais repressoras, mas não alterou em nada o direito, impassível na sua eterna missão de planejar e punir comportamentos. De resto, foi um discípulo de Freud, ademais filósofo e sociólogo, quem mais aprofundou o antagonismo entre o homem natural e o homem social. Refiro-me a Marcuse e sua obra intitulada Eros e Civilização, em que demonstra que o processo civilizatório se faz às custas do sacrifício do homem, de todos os homens. Opõe o “princípio do prazer” (em si bom) ao “princípio da realidade” (em si necessário ao processo civilizatório). Civilizar é reprimir.
Da vida em sociedade brota o direito. Ex facto oritur jus. O “ser” e o “outro”, convivendo, realçam o social, e, por certo, do fato social projetam-se interesses, carências e aspirações a suscitar regulação. Daí valores. E são eles que fecundam o direito. Se o direito é dever-ser, é dever-ser de algo, já o disse Vilanova, o recifense, como a sublinhar que o axiológico não paira no ar, desvinculado da concretude e da vida. Os valores não são entes etéreos ou coleção de imperativos morais, imutáveis e intangíveis, tais quais essências sacrossantas. Não são supra-humanos nem nos chegam ab extra. Projetam-se do homem na história, do homem concreto, de um “estar aí no mundo com os outros”. Das necessidades às aspirações e, daí, às normas. Assim, se o direito está na norma, por certo brotou do espaço cultural de cada povo com as suas aspirações e os seus valores, epifenômenos da experiência social, nucleada à volta do processo de reprodução da vida humana.
Ocorre que os critérios e valores que informam historicamente a construção das legalidades vigentes trazem a marca dos interesses concretos, até mesmo conflitantes, que do fundo mais profundo da sociedade emergem à luz colimando formalização e juridicidade. Trata-se então de dar forma, eficácia e vigência a prescrições que se reputam certas e necessárias à convivência humana e à ordem pública. Tudo isso é feito por meio de instituições que repassam para a ordem jurídica os conflitos de interesses existentes no meio social.
Sacha Calmon Navarro Coêlho
é Doutor em Direito. Jurista. Advogado e parecerista. Conferencista. Autor.
Fonte: Genjuridico.com.br/
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