quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

Direito Adquirido em Tempo de Reformas

A proposta de reforma da Previdência e de outras reformas ditas “estruturais” tem suscitado aceso debate em torno da proteção dos direitos hoje assegurados ao cidadão brasileiro. De um lado, há intenso discurso no sentido da necessidade das referidas reformas, apresentadas por vezes como o “único caminho” para reequilibrar a economia brasileira; de outro lado, há justificado receio de que a “conta” de uma crise econômica, que é também mundial, venha a ser paga pelas camadas mais necessitadas da população brasileira. Nesse embate tão extremo entre o econômico e o social, não é raro que as pessoas se perguntem como se posiciona a ordem jurídica.

Até um passado muito recente, tais questões eram solucionadas à luz da noção de direito adquirido. Como se sabe, a Constituição brasileira afirma, em seu artigo 5o, inciso XXXVI, que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. O Constituinte emprega, mais uma vez, a expressão “direito adquirido” no artigo 17 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, quando afirma que “Os vencimentos, a remuneração, as vantagens e os adicionais, bem como os proventos de aposentadoria que estejam sendo percebidos em desacordo com a Constituição serão imediatamente reduzidos aos limites dela decorrentes, não se admitindo, neste caso, invocação de direito adquirido ou percepção de excesso a qualquer título.” A redação desse último dispositivo foi dada pela Emenda Constitucional 41, de 2003, destinada exatamente a uma de nossas muitas “reformas da Previdência”.

A Constituição, portanto, ao mesmo tempo em que reconhece o direito adquirido, não lhe reserva caráter absoluto. Tampouco define o que deve ser entendido como direito adquirido. A definição continua sendo, ao menos no plano normativo, aquela que é dada pela antiga Lei de Introdução ao Código Civil – hoje denominada “Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro”, por força da Lei 12.376, de 2010. A Lei de Introdução ao Código Civil (com o perdão da insistência) define o direito adquirido como aquele “que o seu titular, ou alguém por êle, possa exercer, como aquêles cujo comêço do exercício tenha têrmo pré-fixo, ou condição pré-estabelecida inalterável, a arbítrio de outrem.” São, em outras palavras, os direitos que já se poderiam exercer, ainda que não tenham sido exercidos; direitos que, na célebre lição de Francesco Gabba, em sua Teoria della retroattività delle leggi, passam “a fazer parte imediatamente do patrimônio de quem o adquiriu”.

Encarado como limite à atuação do Poder Público, o direito adquirido foi diversas vezes invocado perante a nossa jurisprudência para evitar prejuízos decorrentes de alterações de gratificações, critérios de cálculo de remuneração, organização de carreiras, entre outros aspectos associados normalmente ao serviço público. Em resposta, o Supremo Tribunal Federal acabou por consolidar o entendimento de que “não há direito adquirido a regime jurídico” (STF, RE 597.838-AgR, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, entre tantos outros). Na origem desse posicionamento situa-se a tentativa de não impedir ajustes periódicos destinados a readequar as relações administrativas às possibilidades governamentais, diante de um cenário caracterizado, necessariamente, pela finitude de recursos. Tomado em sentido absoluto, o direito adquirido acabaria, assim, por configurar uma barreira “sólida demais” diante da mutabilidade de cenários que marca a realidade contemporânea.

Como se vê, a restrição jurisprudencial aos efeitos da proteção ao direito adquirido não deriva de uma oposição à sua função – preservação de direitos e garantias já incorporados à esfera jurídica do seu titular –, mas sim de um receio em relação à sua estrutura: teme-se consagrar um obstáculo rígido demais, que se afigura intransponível em caráter geral e abstrato, preferindo o Poder Judiciário examinar, caso a caso, se garantias substanciais foram violadas com a alteração que suscita a alegação de direito adquirido. Nesse sentido, por exemplo, já decidiu o STF que a alteração do regime pertinente à composição de vencimentos não viola o direito adquirido, “desde que a eventual modificação introduzida por ato legislativo superveniente preserve o montante global da remuneração e, em consequência, não provoque decesso de caráter pecuniário” (STF, RE 653.736, Rel. Min. Luiz Fux).

Como fórmula que impõe necessariamente uma distinção dicotômica em abstrato entre direitos adquiridos e não-adquiridos, sua aplicação geral e irrestrita gera temores de um congelamento e de uma paralisação que viole o próprio exercício da vontade democrática e acabe por impedir a modificação de situações insustentáveis à luz de novos cenários fáticos. Nada disso compromete, contudo, a importância de sua função de preservação de direitos e garantias, a qual, mesmo naquelas situações em que nossa jurisprudência não reconheça direito adquirido em sentido estrito, deve ser buscada não já de modo absoluto, mas proporcional. É nesse espaço residual que devem entrar em cena instrumentos jurídicos de feição mais moderna, compatíveis com uma aplicação não no velho sistema das dicotomias lógicas do tudo ou nada, mas por medida.

Assume especial relevância nesse contexto a boa-fé objetiva, com sua diretirz substancial de tutela da confiança. Nossa jurisprudência tem decidido reiteradamente que a boa-fé objetiva aplica-se não apenas no campo das relações privadas, mas também à Administração Pública e ao seu comportamento concreto perante o administrado (STJ, RMS 43683/DF, Rel. Min. Mauro Campbell). A própria doutrina administrativista vem pouco a pouco deixando de identificar os fundamentos de diversos instrumentos jurídicos no princípio (historicamente, vago e subjetivo) de “moralidade administrativa” para passar a enxergá-los como produto da aplicação da cláusula geral de boa-fé objetiva, que oferece parâmetros mais concretos de comportamento. E não são poucos os autores que já elencam como princípio fundamental do Direito Administrativo o respeito à boa-fé objetiva na relação com o administrado, e a tutela de sua confiança na estabilidade da conduta do Poder Público. Essa aplicação, todavia, é quase sempre associada ao Poder Executivo, com exemplos que gravitam em torno da reorganização interna do serviço público ou das alterações remuneratórias dos servidores de cada ente da Federação. Pouco se fala sobre o dever do Poder Legislativo de respeitar as expectativas legítimas daqueles que são afetados pela sua atividade pública de produção de normas.

Sobre esse tema, teses alvissareiras foram defendidas na Universidade de Lisboa pelo Procurador do Estado do Rio de Janeiro Alexandre Siuffo Schneider. Em sua dissertação de mestrado, intitulada “A Vinculação do Poder Legislativo ao Princípio da Proteção da Confiança: Limites e Possibilidades no Direito Brasileiro”, Alexandre examina, com profundidade, a aplicação da tutela da confiança perante o fenômeno da inovação legislativa. Em que medida o Poder Legislativo está vinculado a seus atos anteriores? Em que medida está impedido de surpreender o cidadão com uma alteração drástica do quadro normativo que lhe prive de direitos? Em que medida o Congresso Nacional está obrigado a instituir normas de transição, assegurando uma modificação mais gradativa do regime normativo? O trabalho retoma a linhagem que já havia se iniciado, no Brasil, com a obra de Carlos Young Tolomei, A Proteção do Direito Adquirido sob o Prisma Civil-Constitucional – também esta, aliás, fruto de uma dissertação de Mestrado, defendida há cerca de dez anos no Programa de Pós-graduação em Direito da UERJ. Já Tolomei examinava a relativização da proteção ao direito adquirido, evidenciando a insuficiência de uma noção excessivamente rígida para proteger todos os interesses afetados por mudanças normativas de vasta amplitude, como as que voltam a ser discutidas atualmente.

A associação entre direito adquirido e boa-fé objetiva faz-se, em suma, urgente e necessária para impedir que a discussão sobre a preservação de direitos e garantias acabe sendo tratada superficialmente, por meio de lógicas dicotômicas, de tudo ou nada, em que avanços sociais tendem constantemente a sair derrotados diante das iminentes catástrofes econômicas que, de tempos em tempos, são anunciadas entre nós. Pois é certo que a um Poder Legislativo que se pretenda responsável compete, ocasionalmente, fazer reformas impopulares, cuja necessidade reste demonstrada, mas compete também fazê-las com o menor sacrifício possível daqueles que confiam na estabilidade da ordem jurídica, de acordo com a qual pautam suas escolhas e suas vidas. Tal objetivo não se alcança com normas de transição simplistas, que elejam “linhas de corte” arbitrárias, como “direitos garantidos a quem tem mais de 50 anos” ou fórmulas semelhantes. Em alterações que restringem ou suprimem direitos já consolidados, afetando sensivelmente a população, cumpre instituir regimes de transição efetivamente graduais, estruturados não apenas por faixas, mas pela combinação de critérios que assegurem uma proteção tão concreta quanto possível às legítimas expectativas das pessoas afetadas. Tudo isso deve ser lastreado em amplas discussões democráticas conduzidas pelo Poder Legislativo, que não pode se amparar simplesmente nos mandatos concedidos pela vontade popular no momento isolado da eleição, mas deve perseguir continuamente, ainda que não pelo mecanismo do voto, a confirmação da legitimidade da sua atuação perante os eleitores.

Pode ser explicado sob essa perspectiva o recente imbróglio envolvendo a liminar concedida pelo Ministro Luiz Fux na Medida Cautelar em Mandado de Segurança 34.530, que suspendeu os efeitos de atos praticados no âmbito do processo legislativo referente ao Projeto de Lei 4.850/2016, que propõe medidas contra a corrupção. No momento em que proliferam na mídia críticas por uma “intromissão” do STF no processo legislativo – que chegou a ser chamada de “AI 5 do Judiciário” – e ganha renovado interesse o debate acerca da independência entre os Poderes, compete também ao Congresso Nacional fazer sua autocrítica. Talvez, no fundo, o que o STF tenha tentado assegurar, em todo esse episódio, tenha sido justamente a proteção à confiança depositada no próprio processo legislativo por aqueles que sofrem os efeitos das leis, desestimulando um funcionamento parlamentar baseado em manobras procedimentais que têm se tornado corriqueiras no Brasil e em “acordões” entre partidos políticos, fundados, por vezes, em interesses que não são explicados de modo transparente à população e que acabam por gerar resultados verdadeiramente supreendentes para aqueles que são, direta ou indiretamente, os proponentes das normas jurídicas. Não vai aí nenhum elogio ou crítica ao conteúdo do PL 4.850/2016, nem à liminar – a qual, embora tão enxovalhada por violar as fronteiras entre os Poderes constituídos, bem poderia ser interpretada como uma oportunidade para restaurá-las, pois só um exercício transparente, ordenado e previsível da função legislativa pode reduzir o risco das impugnações judiciais e recuperar a confiança nas instituições políticas.

Para o acompanhamento do precedente citado (STF, MS 34.530): http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=5103492

Anderson Schreiber
Doutor em Direito Privado Comparado pela Università degli studi del Molise (Itália). Mestre em Direito Civil pela UERJ. Procurador do Estado do Rio de Janeiro. Professor de Direito Civil da Faculdade de Direito da UERJ. Autor das obras Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil, Direitos da Personalidade, Direito Civil e Constituição, entre outros.

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