Como destacado em texto anterior publicado neste canal, quando do XI Congresso Brasileiro de Direito de Família e das Sucessões, promovido pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) entre os dias 25 e 27 de outubro deste ano de 2017, na cidade de Belo Horizonte, tive a honra de tratar do tema da desconsideração da personalidade jurídica aplicada ao Direito de Família e das Sucessões, respondendo à seguinte indagação formulada pela comissão científica do evento: “O CPC/2015 consolidou, ajudou e fez avanços na teoria e prática da desconsideração da personalidade jurídica?”.
No artigo anterior, demonstrei a origem da ideia, as suas modalidades – com destaque para a desconsideração inversa –, as suas teorias, a amplitude de sua aplicação, bem como diferencei o instituto em relação à despersonalização ou despersonificação.
Como é notório, o incidente recebeu um título próprio no Capítulo IV do Título III, que trata da intervenção de terceiros no processo, sem prejuízo de outros dispositivos. De início, estabelece o art. 133, caput, do Novo Código de Processo Civil que o incidente de desconsideração da personalidade jurídica será instaurado a pedido da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo. Fica afastada, portanto, e pelo menos a priori, a possibilidade de conhecimento de ofício, pelo juiz, da desconsideração da personalidade jurídica. Lembre-se de que a menção ao pedido pela parte ou pelo Ministério Público consta do art. 50 do Código Civil, no que diz respeito à incidência da categoria ao Direito de Família e das Sucessões.
Apesar disso, o presente autor entende que, em alguns casos, de ordem pública, a desconsideração da personalidade jurídica ex officio é possível. Citem-se, de início, as hipóteses envolvendo os consumidores, eis que, nos termos do art. 1º da Lei 8.078/1990, o Código de Defesa do Consumidor é norma de ordem pública e interesse social, envolvendo direitos fundamentais protegidos pelo art. 5º da Constituição Federal de 1988. A esse propósito, por todos os doutrinadores consumeristas, como pondera Claudia Lima Marques, “no Brasil, pois, a proteção do consumidor é um valor constitucionalmente fundamental (Wertsystem) e é um direito subjetivo fundamental (art. 5º, XXXII), guiando – e impondo – a aplicação ex officio da norma protetiva dos consumidores, a qual realize o direito humano (efeito útil e pro homine do status constitucional); esteja esta norma no CDC ou em fonte outra (art. 7º do CDC)” (MARQUES, Claudia Lima. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: RT, 2010. p. 70).
Existem arestos estaduais recentes que adotam tal ideia, caso do Tribunal de Justiça do Distrito Federal para as relações de consumo. A título de exemplo de vários arestos que assim concluem, com mesma relatoria e no âmbito do Juizado Especial Cível:
“AGRAVO DE INSTRUMENTO. JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS. DIREITO DO CONSUMIDOR. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. INCIDÊNCIA DA TEORIA MENOR, QUE POSSIBILITA A DECRETAÇÃO, DE OFÍCIO, APENAS EM RAZÃO DA INSOLVÊNCIA. ARTIGO 28, § 5º, DO CDC. AGRAVO CONHECIDO E PROVIDO. 1. Trata-se de relação de consumo, visto que o agravante é o consumidor, e o recorrido fornecedor de serviços, conforme previsto nos artigos 2º e 3º da Lei n. 8.079, de 11 de setembro de 1990, Código de Defesa do Consumidor. 2. Tratando-se de vínculo proveniente de relação de consumo aplica-se a teoria menor da desconsideração da personalidade (§ 5º do art. 28 do CDC), para qual é suficiente a prova de insolvência da pessoa jurídica, sem necessidade da demonstração do desvio de finalidade ou da confusão patrimonial. 3. Verificada a índole consumerista da relação e o esgotamento, sem sucesso, das diligências cabíveis e razoáveis à busca de bens suficientes para satisfação do crédito do consumidor, é cabível a desconsideração da personalidade jurídica do agravado. 4. Agravo de instrumento conhecido e provido. 5. Sem custas e sem honorários, ante a ausência de recorrente vencido” (TJDF, Processo n. 0700.64.9.252017-8079000, Acórdão n. 104.6000, Segunda Turma Recursal dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, Rel. Juiz Arnaldo Corrêa Silva, julgado em 13.09.2017, DJDFTE 20.09.2017).
Ressalve-se, contudo, que, nos termos do que consta do próprio CPC/2015, especialmente do seu art. 10, que trata da vedação das decisões-surpresa, antes do conhecimento de ofício da desconsideração da personalidade jurídica, o juiz deve ouvir as partes da demanda. Conforme essa norma, “o juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício”.
Penso que também é viável a desconsideração da personalidade jurídica de ofício pelo juiz nos casos de danos ambientais, diante da proteção constitucional do Bem Ambiental, como bem difuso, retirada do art. 225 do Texto Maior. A conclusão deve ser a mesma nas hipóteses envolvendo corrupção, por força da recente Lei n. 12.846/2013, que trata da desconsideração administrativa das empresas envolvidas com tais atos, tendo a norma interesse coletivo inquestionável. Em suma, a decretação ex officio é viável nos casos de incidência da teoria menor.
Quanto às relações familiares e sucessórias, a desconsideração da personalidade jurídica de ofício parece estar descartada. Primeiro, porque nenhuma das normas citadas incide em tais relações. Segundo, pelo fato de que as relações jurídicas submetidas ao Direito de Família e das Sucessões chamam a aplicação da teoria maior, em que não é possível a desconsideração de ofício.
Seguindo no estudo das regras processuais, o § 1º do art. 133 do Novo CPC estabelece que o pedido de desconsideração da personalidade jurídica observará os pressupostos previstos em lei. Desse modo, devem ser respeitadas pelas partes e pelos julgadores as regras materiais comentadas no artigo anterior desta série, bem como as interpretações doutrinárias e jurisprudenciais outrora deduzidas, especialmente quanto às teorias maior e menor.
Igualmente, como antes exposto, com clara origem na evolução doutrinária e jurisprudencial a respeito do tema, enuncia o § 2º do art. 133 do Novo CPC que o incidente de desconsideração é aplicável às hipóteses de desconsideração inversa da personalidade jurídica. Curiosamente, o fundamento legal para a desconsideração invertida ou indireta passou a ser a norma da lei processual, e não a codificação material.
Nos termos da cabeça do art. 134 da Norma Processual Civil emergente, o incidente de desconsideração é cabível em todas as fases do processo de conhecimento, no cumprimento de sentença e na execução fundada em título executivo extrajudicial. No âmbito do Direito de Família, é cabível, por exemplo, em sede de cumprimento de sentença que reconheceu a partilha de bens do casal ou o pagamento de verbas alimentares. Não vemos problema em admitir a desconsideração, ainda, no âmbito de ação de divórcio ou de demanda que pretende a dissolução de união estável, de forma litigiosa.
A instauração do incidente será imediatamente comunicada ao distribuidor para as anotações devidas (§ 1º). Dispensa-se a instauração do incidente se a desconsideração da personalidade jurídica for requerida na petição inicial, situação em que será citado diretamente o sócio ou a pessoa jurídica (§ 2º). A instauração do incidente suspenderá o processo, salvo na hipótese de pedido na exordial, com citação do sócio (§ 3º). Parece ter pecado o CPC/2015 por mencionar apenas os sócios e não os administradores da empresa, sendo viável fazer uma interpretação extensiva para também incluí-los. A menção a qualquer fase do processo é louvável, afastando o debate anterior de desconsideração em processo executivo, mormente por um suposto atentado ao contraditório e à ampla defesa. Com a instauração do incidente, essa discussão fica afastada.
Também são afastadas inquietações anteriores com a previsão de que de que os sócios – e administradores – passam a compor o polo passivo da demanda. Dessa forma, devem ser tratados como partes e não como terceiros, nos casos de desconsideração da personalidade jurídica. Tanto isso é verdade que o novo art. 790, inciso VII, do Código de Processo Civil passou a enunciar que, nas situações de desconsideração da personalidade jurídica, ficam sujeitos à execução os bens do responsável.
Suplementarmente, o art. 674 do Novo Código de Processo Civil define como legitimado para opor embargos de terceiros aquele que, não sendo parte no processo, sofrer constrição ou ameaça de constrição sobre bens que possua ou sobre os quais tenha direito incompatível com o ato constritivo. Ademais, conforme o § 2º, inciso III, do mesmo artigo, considera-se terceiro, para ajuizamento dos embargos de terceiro, quem sofrer constrição judicial de seus bens por força de desconsideração da personalidade jurídica, de cujo incidente não fez parte. Somente nessas hipóteses fáticas os embargos de terceiro são cabíveis.
O § 4º do art. 134 do CPC/2015 preconiza que o requerimento de desconsideração da personalidade deve demonstrar o preenchimento dos pressupostos legais específicos para a sua incidência. Em suma, o pedido deve ser bem fundamentado, com a exposição da incidência das teorias maior ou menor, na linha de todas as lições que foram antes desenvolvidas no primeiro artigo desta série.
Instaurado o incidente, o sócio (ou a pessoa jurídica) será citado para manifestar-se e requerer as provas cabíveis no prazo de 15 dias (art. 135 do Novo Processo Civil), o que evidencia a instauração do louvável contraditório, sempre defendido pela doutrina. Nos termos do novo art. 136 do CPC/2015, concluída a instrução, se necessária, o incidente será resolvido por decisão interlocutória, e não por sentença. Se a decisão for proferida pelo relator, caberá agravo interno, com tratamento específico no próprio Estatuto Processual emergente.
Como última regra geral a respeito do incidente de desconsideração, nos termos do art. 137 do Novo CPC, acolhido o pedido de desconsideração, a alienação ou a oneração de bens, havida em fraude de execução, será ineficaz em relação ao requerente. Em suma, a opção legislativa é resolver a questão no plano da eficácia, e não da validade, como consta da parte final do art. 50 do Código Civil, com a notória ampliação de responsabilidades decorrentes do instituto.
Outro dispositivo que merece ser citado e anotado é o art. 795 do Código de Processo Civil em vigor, segundo o qual os bens particulares dos sócios não respondem pelas dívidas da sociedade, senão nos casos previstos em lei. Nos termos do seu § 1º, o sócio-réu, quando responsável pelo pagamento da dívida da sociedade, tem o direito de exigir que primeiro sejam excutidos os bens da sociedade, o que confirma a sua responsabilidade subsidiária e não solidária, presente o benefício de ordem ou de excussão.
Ao sócio que alegar esse benefício, cabe a nomeação de bens da sociedade, situados na mesma comarca, livres e desembargados, que bastem para pagar o débito (art. 795, § 2º). O sócio que pagar a dívida poderá executar a sociedade nos autos do mesmo processo (art. 795, § 3º, do Novo CPC). Por fim, para a desconsideração da personalidade jurídica é obrigatória a observância do incidente previsto no próprio CPC/2015, o que indica que a responsabilidade do sócio ou administrador passa a ser integral e solidária (art. 795, § 4º), na linha do que vinha entendendo a melhor jurisprudência nacional. Por todos os julgados superiores, merece destaque o seguinte: “tese expendida no recurso especial, consistente na limitação da responsabilidade dos sócios à correspondente participação societária ou ao exercício dos poderes de administração, a despeito da desconsideração da personalidade jurídica, em princípio, não se mostra plausível. Efetivamente, o artigo 50 do Código Civil não tece qualquer restrição nesse sentido, sendo certo que tal exegese poderia tornar inócuo tal instituto, destinado a permitir a satisfação pontual do credor, lesado pelo desvio de finalidade ou confusão patrimonial” (STJ, Ag. Rg. na MC 20.472/DF, Rel. Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 03.09.2013, DJe 20.09.2013).
Também em boa hora o novo art. 1.062 do CPC/2015 passa a prever que o incidente de desconsideração da personalidade jurídica aplica-se ao processo de competência dos juizados especiais. Como o incidente não traz grandes complexidades, não haveria qualquer óbice para a sua incidência nesses processos, constituindo-se em um importante mecanismo que afasta a má-fé e pune os maus sócios e administradores das pessoas jurídicas. Sobre o Direito de Família, existem projetos legislativos que pretendem trazer para o âmbito do Juizado Especial as suas demandas, o que não conta com o nosso apoio, diante das peculiaridades e complexidades pontuais dessas ações.
Na jurisprudência nacional já podem ser encontrados vários arestos aplicando o novel incidente e com debates interessantes, notadamente para o Direito de Família e das Sucessões. Tais arestos, todos muito recentes, serão analisados no terceiro e último artigo desta série.
De todo modo, para encerrar este estudo, merecem ser comentados brevemente dois enunciados doutrinários aprovados na I Jornada de Direito Processual Civil, promovida pelo Conselho da Justiça Federal em agosto de 2017.
O primeiro deles, de número 11, estabelece a necessidade de aplicação do incidente previsto entre os arts. 133 e 137 do Novo CPC não só para a desconsideração direta, como também para a inversa ou indireta, o que, como se verá, é reconhecido por muitos acórdãos recentes. O enunciado cita ainda a desconsideração expansiva, também denominada sucessão de empresas ou desconsideração econômica, em que há a ampliação de responsabilidades de uma pessoa jurídica para outra, evidenciado o conluio fraudulento praticado pelos sócios ou administradores de ambas.
O segundo enunciado doutrinário, aprovado no mesmo evento, preceitua que é cabível a concessão de tutela provisória de urgência em incidente de desconsideração da personalidade jurídica (Enunciado n. 42). Como se sabe, a tutela provisória de urgência está tratada pelo art. 300 do CPC/2015, sendo concedida quando houver elementos que evidenciem a probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo. Duas são as suas modalidades: a) a tutela de urgência de natureza antecipada, preenchidos tais requisitos; e b) a tutela de urgência de natureza cautelar, efetivada mediante arresto, sequestro, arrolamento de bens, registro de protesto contra alienação de bem e qualquer outra medida idônea para asseguração do direito (art. 301 do CPC/2015).
Vários acórdãos deferem a tutela provisória de urgência para bloqueio ou arresto de bens do fraudador, seja ele pessoa natural ou jurídica, na desconsideração da personalidade jurídica. A ilustrar, do Tribunal Paulista, entendeu-se pela viabilidade da desconsideração inversa da personalidade jurídica, instaurando-se o incidente para tal fim. Reformou-se decisão de primeiro grau, para manter o deferimento de tutela de urgência, que autorizava arresto de bens (TJSP, Agravo de Instrumento n. 2153635-11.2016.8.26.0000, Acórdão 10484765, Santo André, Rel. Des. Roberto Mac Cracken, 22ª Câmara de Direito Privado, julgado em 25.05.2017, DJESP 07.06.2017, p. 1765).
Outros julgados de aplicação do incidente, notadamente no âmbito do Direito de Família e das Sucessões, serão expostos no terceiro e último texto desta série de artigos.
Flávio Tartuce
Doutor em Direito Civil e Graduado pela Faculdade de Direito da USP. Mestre em Direito Civil Comparado e Especialista em Direito Contratual pela PUCSP. Professor Titular permanente do Programa de Mestrado e Doutorado da Faculdade Autônoma de Direito (FADISP-ALFA). Professor do Curso de Graduação da Escola Paulista de Direito (EPD, São Paulo), na disciplina Direito Contratual. Coordenador e Professor dos Cursos de Pós-Graduação Lato Sensu em Direito Civil e Processual Civil, Direito Civil e Direito do Consumidor, Direito Contratual e Direito de Família e das Sucessões da EPD. Professor exclusivo da Rede de Ensino LFG nos cursos preparatórios para as carreiras jurídicas. Professor convidado em outros cursos de Pós-Graduação Lato Sensu pelo País, em Escolas da Magistratura, na AASP e na ESA-OABSP. Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), do Instituto Luso-Brasileiro de Direito Comparado, do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP), da Comissão de Direito Civil da OABSP, do Instituto Brasileiro de Política e de Direito do Consumidor (BRASILCON), do Instituto Brasileiro de Direito Civil (IBDCivil), da International Society of Family Law (ISFL) e da Rede Brasileira de Pesquisadores em Direito Internacional (RBPDI).Parecerista membro do Conselho Editorial da Revista Brasileira de Direito Civil, do IBDCivil, e da Revista Brasileira de Direito das Famílias e das Sucessões, do IBDFAM. Membro avaliador do CONPEDI (Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito). Palestrante em cursos, congressos e seminários jurídicos. Advogado e consultor jurídico em São Paulo.
Fonte: Genjuridico.com.br/
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