A pergunta que intitula o presente artigo deu nome a 1a Mesa (integrada também pelos Professores Flávio Luiz Yarshell, Arlete Ines Aurelli, Luiz Henrique Volpe Camargo) do Ciclo de Debates sobre o Código de Processo Civil ocorrido no dia 04 de agosto de 2017 no belíssimo TUCA (Teatro da PUC/SP), sob a Coordenação do Professor Cassio Scarpinella Bueno.
A resposta a ela me faz lembrar de um excerto de um livro do “Interpretare: dialogo tra un musicista e un giurista” (Interpretar: diálogo entre um músico e um jurista), publicado em 2016, na Itália, por Gustavo Zagrebesky (Ex-Presidente da Corte Constitucional italiana e Professor emérito da Universidade de Torino) e Mario Brunello (Violoncelista italiano), no qual Zagrebelsky ressalta que:
Os médicos interpretam sintomas;
Os cientistas, os grandes livros da natureza;
Os históricos, os eventos sociais e políticos;
Os teólogos, os textos sacros;
O apaixonado, o sorriso e a aparência da amada;
O músico, as notas da partitura;
Os juízes, as fórmulas legais”. (em tradução livre)
Inspirado no jurista italiano, aqui estou eu para responder a pergunta a respeito de como interpretar e aplicar o Código de Processo Civil de 2015[1].
O ato de interpretar não é apenas um ato cognitivo do texto normativo. Trata-se, também, de ato construtivo da norma a ser aplicada ou de criação de seu sentido normativo à luz do caso concreto, em aceitável distinção entre texto normativo e norma jurídica, plenamente acolhida, contemporaneamente, pela teoria e pela filosofia do direito. Norma jurídica não é sinônimo de dispositivo ou de texto de lei (nem individualizado, nem em conjunto), mas sim o sentido atribuído a ele (ou a eles) a partir da interpretação com base na Constituição, nos Tratados Internacionais internalizados, nos direitos fundamentais e humanos, nos princípios jurídicos e na atribuição de sentido às cláusulas gerais e aos conceitos indeterminados em suas interações com a causa.
Deste modo, a primeira nota é a de que a interpretação dos textos normativos do CPC de 2015 deve observar os preceitos que veiculam matérias processuais estabelecidos na Constituição e nos Tratados Internacionais incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro, como é o caso do Pacto de São José da Costa Rica. Em outras palavras, a interpretação do CPC de 2015 deve observar o “modelo constitucional do direito processual civil”, para usar expressão amplamente difundida no Brasil por Cassio Scarpinella Bruno, como enfatiza o seu art. 1o: “O processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil, observando-se as disposições deste Código”.
Ademais, o CPC de 2015 deve ser interpretado de acordo com os direitos processuais fundamentais e humanos (normalmente contidos na Constituição Federal e nos Tratados Internacionais) que possuem inequívoca aplicabilidade imediata no ordenamento jurídico brasileiro (art. 5o, § 2o, Constituição).
Deve ainda ser interpretado de acordo com os princípios jurídicos, que não são, como outrora, meros meios de integração de lacunas. Eles – os princípios – são espécies normativas, que prescrevem fins a serem atingidos e servem como fundamento para a intepretação e a aplicação do ordenamento jurídico. Possui, portanto, entre outros, caráter interpretativo.
O CPC de 2015 também deve ser interpretado e aplicado de acordo com as normas fundamentais do processo civil contidas nos seus 12 (doze) primeiros artigos e que concretizam as garantias processuais ao prescreverem os princípios da primazia do julgamento do mérito (art. 4o), da boa-fé objetiva (art. 5o), da colaboração (art. 6o), da dignidade da pessoa humana (art. 8o), da fundamentação das decisões judiciais (art. 11), da publicidade (art. 11), do contraditório (art. 9o) e as regras da vedação de decisão surpresa[2] (art. 10) e da ordem cronológica de julgamentos (art. 12), observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência (art. 8o).
Um exemplo, entre inúmeros, pode confirmar as premissas interpretativas aqui delineadas. O contraditório, a colaboração, a boa-fé e a vedação de decisão surpresa impõem ao juiz, no julgamento liminar de improcedência do pedido (art. 332), que oportunize ao autor manifestar a respeito do precedente que pretende aplicar ao caso antes de liminarmente julgar improcedente o pedido contido na inicial. Ao exercer seu contraditório, o Autor pode demonstrar ao juiz que as circunstâncias fáticas do caso demandado são distintas dos fatos ocorridos no precedente na qual foi fixada a tese jurídica de pretensa aplicação.
Por fim, o CPC de 2015 deve ser interpretado em conformidade com o sistema processual estabelecido por ele próprio e a partir dele. Neste sentido, é importante analisar que entre os objetivos traçados pela Comissão de Juristas elaboradora do Anteprojeto de novo CPC (e contidos na exposição de motivos) encontra-se o “maior grau de organicidade ao sistema processual”. Isso chama a atenção para a importância da interpretação e aplicação sistemática dos textos normativos do CPC de 2015. Entre diversos pontos, ressalto a importância do sistema de formação e de aplicação de precedentes judiciais estabelecido pelo CPC de 2015 como forma de melhorar e otimizar a prestação jurisdicional por todos os órgãos do Poder Judiciário brasileiro.
Portanto, o CPC de 2015 deve ser interpretado e aplicado em conformidade com a Constituição, os tratados internacionais incorporados, os direitos fundamentais e humanos, os princípios jurídicos, as normas fundamentais do processo civil contidas nos seus 12 (dozes) artigos iniciais, o sistema processual estabelecido por ele próprio e a partir dele e os sentidos adequados a serem atribuídos às cláusulas gerais processuais e aos conceitos indeterminados em suas interações com o caso concreto.
[1] Os dispositivos citados sem menção ao diploma legal são do CPC de 2015.
[2] Sobre o tema, recentemente lancei o livro “Princípio do contraditório e vedação de decisão surpresa” pela Editora Forense.
Welder Queiroz dos Santos
Doutorando, mestre e especialista em Direito Processual Civil. Pós-graduado em Direito Empresarial. Professor efetivo da Faculdade de Direito da UFMT. Professor em cursos de pós-graduação lato sensu e de extensão em direito civil e em direito processual civil. Advogado.
Fonte: Genjuridico.com.br/
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