Plurivocidade de acepções – Pluralidade de concepções
Plurívoco, o termo “validade das normas jurídicas” pode assumir, entre outras, as seguintes acepções: especial forma de existência de uma norma;1 atributo da norma compatível com aquela que programou a sua criação;2 aptidão para vir a ser aplicada por um tribunal;3 circunstância de, efetivamente, disciplinar comportamentos;4 compatibilidade da norma do direito positivo com padrões religiosos, racionais ou humanos, em acepção ampla.5
Cada um desses sentidos corresponde a um ponto de vista possível sobre o tema da validade das normas jurídicas e se refere a modos diferentes de compreender o que seja o próprio Direito. Temos, entre as concepções que acabamos de apontar, ideias relativas à concepção de direito natural, realista escandinava e positivista, percebida tanto sob a óptica de quem descreve quanto sob a perspectiva de quem prescreve normas.
Neste trabalho, estudaremos a validade das normas sob a perspectiva positivista. Investigaremos o sentido de ser norma válida no sistema de direito positivo, o fundamento desta norma e os efeitos da validade. Veremos, também, as consequências de não ser norma válida, além dos efeitos que projeta na sua vigência e eficácia.
Esclarecer o ponto de vista, contudo, não libera o tema de controvérsias. Basta ver o sempre atual e instigante debate sobre a semelhança ou a diferença entre os conceitos de validade e existência. Se esses conceitos assumirem sentidos distintos, a existência da norma no sistema jurídico é anterior e independente da validade. Seriam, portanto, coisas distintas o estar no sistema e o ser norma válida.
Equiparando, contudo, os conceitos de existência e validade, seria inadequado falar de norma que existe e não é válida, pois valer é a especial forma de existir de uma norma. Noutro falar, a norma existe valendo, prescrevendo condutas coercitivamente. Daí se questionar: se a norma não vale, como segue prescrevendo condutas? Sendo aplicada com o uso da forma? Sendo referendada pelo Poder Judiciário? Se não vale, não vale para quem e segundo quem?
Aqui, o sentido de validade é sutilmente modificado, deixando de ser um juízo de regularidade e passando a ser a forma de existência da norma.6 Essa mudança, porém, reflete uma alteração de ponto de vista entre a primeira e a segunda posição. Deixaremos essa distinção mais clara a seguir.
Ao contrário do que possa parecer, entendemos não existir qualquer controvérsia – contradição ou contraditoriedade – entre as concepções de validade como sinônimo de existência ou como conceitos distintos.
Explicamos: para que exista uma contradição ou uma contrariedade é necessário que uma proposição signifique o contrário da outra ou que as duas não possam ser simultaneamente verdadeiras. No caso, não temos nem uma contradição, nem uma contrariedade.
Os dois modos de explicar a validade são, simultaneamente, possíveis, pois refletem pontos de vista distintos sobre o sistema jurídico. Um é o ponto de vista de quem vê para descrever, e o outro de quem prescreve normas, disciplinando condutas.
1. Concepções relativas à existência, aplicabilidade, pertinência e validade das normas jurídicas - o ponto de vista dos observadores contraposto ao dos participantes
1.1. Validade como existência – o ponto de vista dos participantes
Quem equipara existência e validade decide descrever o direito sob a perceptiva de quem decide, como se fosse um órgão julgador. O estar no sistema, por si só, já é suficiente para que se possa afirmar que a norma é, pelo menos presumivelmente, válida. É o que sustenta Paulo de Barros Carvalho no seguinte excerto:
“(…) A validade não deve ser tida como predicado monádico, como propriedade ou como atributo que qualifica a norma jurídica. Tem status de relação: é o vínculo que se estabelece entre a proposição normativa, considerada na sua inteireza lógico-sintática e o sistema de direito posto, de tal sorte que ao dizermos que u’a norma ‘n’ é válida, estaremos expressando que ela pertence ao sistema ‘S’. Ser norma é pertencer ao sistema, o ‘existir jurídico específico’ a que alude Kelsen. (...) Seja como for, ingressando no ordenamento pela satisfação dos requisitos que se fizerem necessários, identificamos a validade da norma jurídica, que assim se manterá até que deixe de pertencer ao sistema”.7
E, sendo o direito positivo um sistema do tipo dinâmico, só um órgão do próprio sistema pode, validamente, decidir se uma norma foi ou não produzida segundo a respectiva norma de competência tributária.
“Segundo a natureza do fundamento de validade, podemos distinguir dois tipos diferentes de sistemas de normas: um tipo estático e um tipo dinâmico. As normas de um ordenamento do primeiro tipo, quer dizer, a conduta dos indivíduos por elas determinada, é considerada como devida (devendo ser) por força do seu conteúdo: porque a sua validade pode ser reconduzida a uma norma a cujo conteúdo pode ser subsumido o conteúdo das normas que formam o ordenamento, como o particular ao geral. O tipo dinâmico é caracterizado pelo fato de a norma fundamental pressuposta não ter por conteúdo senão a instituição de um fato produtor de normas, a atribuição de poder a uma autoridade legisladora ou – o que significa o mesmo – uma regra que determina como devem ser criadas as normas gerais e individuais do ordenamento fundado nesta norma fundamental”.8
A fragilidade deste ponto de vista está em não descrever, adequadamente, aqueles casos em que a norma jurídica foi produzida sem fundamento de validade. Esse ponto é, justamente, o que ressalta Pontes de Miranda nessa bela passagem:
“Os juristas que não distinguem o não existente e o nulo, excluem a classe nula, e tropeçam com ela a cada momento, porque o Direito, histórica e sistematicamente, alude a ela. Ao pretenderem tratá-la como sinônimo de não-existente, cometem erro de lógica (confusão entre “nulo” no sentido de não ter todos os elementos componentes, de modo que os que têm não operam, e ‘não existente’)”.9
Como explicar, sob esta perspectiva, que uma norma esteve no sistema jurídico prescrevendo condutas e que, após análise do Poder Judiciário, teve a sua invalidade reconhecida? E quando ocorre, por exemplo, controle de constitucionalidade difusa e a norma jurídica é inconstitucional para uns e constitucional para outros? E todas as normas do sistema de direito positivo que tipificam as nulidades, imputam consequências para a sua ocorrência, são normas que prescrevem disposições para fora do sistema? Essas são apenas algumas das perguntas que nos ocorrem sob esse ponto de vista.
Para respondê-las, é útil pensar na distinção entre validade e existência.
1.2. Validade como atributo da norma – o ponto de vista dos observadores
Os que separam os conceitos de validade e existência, assim o fazem por entender que a norma pode estar no sistema de direito positivo sem ser válida.10 Assim, uma coisa é existir, outra é ter sido produzida de acordo com o que prescreve a norma de competência. A esse respeito, Pontes de Miranda afirma:
“1. EXISTIR E VALER – Para que algo valha é preciso que exista. Não tem sentido falar-se de validade ou de invalidade a respeito do que não existe. A questão da existência é questão prévia. Somente depois de se afirmar que existe é possível pensar-se em validade ou em invalidade. Nem tudo que existe é suscetível de a seu respeito discutir-se se vale, ou se não vale. Não há de afirmar nem de negar que o nascimento, ou a morte, ou a avulsão, ou o pagamento valha. Não tem sentido. Tão-pouco, a respeito do que não existe: se não houve ato jurídico, nada há que possa ser válido ou inválido. Os conceitos de validade ou de invalidade só se referem a atos jurídicos, isto é, a atos humanos que entraram (plano da existência) no mundo jurídico e se tornaram, assim, atos jurídicos”.11
Desta forma, o sistema das normas que existem se divide em dois conjuntos, o das normas válidas e o das normas inválidas. A invalidade, portanto, está no sistema de direito positivo, sendo qualificada e tendo os efeitos da sua ocorrência programados por outras normas.
Nesse sentido, também, afirma Lourival Vilanova que:
“Os conceitos de existência e de inexistência, que o conhecimento jurídico usa, são com referência a normas. A norma é sempre o pressuposto da experiência especificamente jurídica, mostra-o Norberto Bobbio. Separar os planos da existência¸ da validade e da eficacidade é acertado epistemologicamente e metodologicamente. Mas, na textura do real, o ser e o não-ser são relevantes porque se predicam como qualificados em juízos-de-validade. A correspondência entre os elementos do fato e as notas do tipo (prefiguradas na hipótese da norma) não é de neutra conformidade ou desconformidade, mas de simultânea e inevitável valoração, nas espécies de licitude ou ilicitude. O que é logicamente separável, onticamente é interconexo”.12
A inconsistência deste ponto de vista decorre do fato de não processar a circunstância de que o direito positivo é um sistema dinâmico. O juízo de validade é, necessariamente, prescritivo. Noutro dizer: em termos concretos, a afirmação de invalidade feita na Ciência do Direito é irrelevante para o direito positivo.
O sinal de validade ou invalidade da norma jurídica não muda em face da posição da doutrina. Só o próprio sistema, mediante a publicação de uma norma, pode prescrever modificações no sistema jurídico.
Daí a completa irrelevância prescritiva da distinção entre existência e validade. Se é inválido, é inválido para quem? De que serve a afirmação de invalidade? Quem me qualificou para afirmar ou negar a validade de uma norma?
São perguntas que não encontram respostas satisfatórias entre aqueles que acatam a distinção entre validade e existência.
1.3. Validade como aplicabilidade – um critério realista
Normas que estão no sistema de direito positivo podem ser classificadas como válidas e não válidas. Porém, que significa estar no sistema de direito positivo? Como posso saber se uma norma é ou não jurídica?
Responder a essas perguntas com critérios estruturais ou de sentido é insuficiente. A simples estrutura da norma ou o seu conteúdo, isoladamente, não são suficientes para que se possa afirmar que uma norma é efetivamente jurídica.
Num exemplo, um professor de direito pode criar uma norma para instituir o imposto sobre grandes fortunas. Essa norma, muito embora tenha a estrutura lógica de uma norma jurídica e prescreva conteúdos autorizados pela Constituição da República, não pode ser qualificada como elemento do sistema de direito positivo.
Na incerteza dos critérios de forma e sentido, só o critério funcional pode oferecer resposta satisfatória: é a possibilidade de ser aplicado por ato do Poder Judiciário que qualifica uma norma como jurídica. Esse atributo, de ser objeto de um processo judicial, é o critério por excelência para saber se uma norma está ou não no sistema jurídico
É justamente essa a ideia preconizada por Alf Ross,13 um dos mais destacados representantes do realismo escandinavo. Segundo esse autor, o critério que separa normas válidas de não válidas é pragmático e consiste na circunstância de uma norma ser suscetível de controle pelo Poder Judiciário.
Entendemos que a efetividade – possibilidade de aplicação – é um critério relevante para a compreensão das normas jurídicas. Porém, esse critério não se refere à validade ou invalidade da norma, pois o juízo de validade ou invalidade nos sistemas dinâmicos só compete aos órgãos do próprio sistema. Eis a lição de Alf Ross a esse respeito:
“(...) somente os fenômenos jurídicos no sentido mais restrito – a aplicação do direito pelos tribunais – são decisivos para determinar a vigência das normas jurídicas. (...) A efetividade que condiciona a vigência das normas só pode, portanto, ser buscada na aplicação judicial do direito, não o podendo no direito de ação entre indivíduos particulares”.14
O critério de efetividade é útil, então, para o juízo de existência da norma num sistema qualquer. Existe a norma que possa ser levada à apreciação do poder jurisdicional. Não existe a norma que não seja passível de análise jurisdicional. O critério é pragmático: desencadeou a jurisdição, existe. Caso contrário se trata de proposição não jurídica, inexistente no sistema de direito positivo.
Ao optar pelo critério de efetividade da norma como critério de existência ou inexistência, abandonamos as soluções tradicionais que buscavam indicar requisitos de validade para que uma norma exista no sistema jurídico. Com efeito, não é o fato de ter sido produzida por órgão credenciado pelo sistema, nem seguir procedimento devido, nem qualquer outro dado objetivo.
Um prefeito que resolva editar, por meio de lei, adicional do imposto sobre a renda municipal está criando tributo sem ser sujeito competente, sem usar o processo legislativo adequado, tampouco tratar de matéria que lhe fosse possível. Porém, sendo publicada no Diário Oficial do Município esta norma poderá fundamentar pagamentos, lançamentos de ofício, inscrição em dívida ativa, execução fiscal, constrição de bens do contribuinte inadimplente como se tivesse sido produzida na forma prevista pela Lei Orgânica do Município e pela Constituição da República.
Com esse exemplo, ilustramos a ideia segundo a qual o juízo de existência é feito por quem observa o sistema, podendo ser verdadeira ou falsa. O critério para saber se a descrição feita pela norma é verdadeira ou falsa é o da efetividade. Se se afirma que uma norma não existe é porque ela não pode ser apreciada pela jurisdição; logo, não tem validade nem invalidade; é simplesmente irrelevante. Caso contrário, se se afirma que a norma existe é porque ela é efetiva, podendo ser considerada pelo sistema norma jurídica válida ou inválida.
1.4. Proposta de superação dos paradoxos entre validade, existência e aplicabilidade
Numa síntese do que acabamos de falar, entendemos ser perfeitamente possível analisar uma norma em relação a um sistema jurídico qualquer com base nos seguintes critérios: validade como existência da norma, validade como atributo da norma e existência da norma como efetividade.
O que enseja controvérsia e precisa ser esclarecido é a quem compete efetuar cada um desses juízos, bem como o efeito que projetam sobre a validade ou invalidade da norma.
Nesse ponto, percebemos que a distinção entre observadores e participantes é decisiva para superar as controvérsias. De fato, cabe ao observador: i. perceber se a norma jurídica existe ou não existe num sistema qualquer, utilizando como critério para fundamentar esse juízo a circunstância de a norma ser ou não passível de apreciação pelo judiciário; e iii. afirmar a compatibilidade ou incompatibilidade entre normas do sistema. No item i., a análise é feita no plano do ser e as afirmações do observador sujeitam-se aos juízos de verdade ou de falsidade. No item ii., as afirmações são irrelevantes, pois são feitas por um observador do sistema; não alteram a validade ou invalidade da norma no sistema jurídico.
Já os sujeitos que participam do sistema de direito positivo como titulares da jurisdição podem prescrever que: i. toda norma que está num sistema corresponde a outra norma do sistema jurídico e é, por isso, presumivelmente válida; ii. se se demonstra que não há compatibilidade entre uma norma e a que prescreve a competência para editá-la, então é porque a norma criada se ajusta à norma sancionatória da competência – cláusula alternativa tácita em Kelsen e norma processual em Lourival Vilanova; iii. a norma criada pode ter sido produzida de forma lícita ou ilícita, conforme se ajusta à norma de competência ou sancionatória da competência; iv. a aplicação desta última pelo participante do sistema faz prevalecer a norma de competência em detrimento da vigência ou da eficácia da norma criada ilicitamente; v. o participante prescreve a licitude ou ilicitude de uma norma jurídica; vi. é pressuposto da manifestação do participante que a norma exista, por isso ele só se refere à validade ou invalidade da norma.
Pois bem, separando os juízos que competem aos observadores e aos participantes, é fácil perceber que os conflitos entre as duas formas de compreender o tema da validade são, em verdade, conflitos de pontos de vista.
A esse respeito, Robert Alexy é didático ao demonstrar que:
“Adopta la perspectiva del participante quien en un sistema jurídico participa en una argumentación acerca de lo que en este sistema jurídico está ordenado, prohibido y permitido o autorizado. En el centro de la perspectiva del participante se encuentra el juez. Cuando otros participantes, por ejemplo, juristas, abogados o ciudadanos interesados, exponen argumentos en pro o en contra de determinados contenidos del sistema jurídico, entonces, en última instancia, se refieren a cómo hubiera decidido un juez si hubiera querido decidir correctamente. “Adopta la perspectiva del obsevador quien no pregunta cuál es la decisión correcta en un determinado sistema jurídico sino cómo se decide de hecho en un determinado sistema jurídico. Un ejemplo de un observador tal es el de Norbert Hoerster: un americano blanco casado con una mujer de color desea viajar a Sudáfrica en la época de la vigencia de las leyes del apartheid y reflexiona acerca de los detalles jurídicos de su viaje”.15
E mais: esses pontos de vista são compatíveis entre si. Mesmo o juízo de efetividade da norma, se visto como critério de existência, pode ser, também, aproveitado para aumentar as perspectivas de compreensão das normas jurídicas num sistema jurídico qualquer.
Desta forma, percebemos não existir razões para optar por uma definição do conceito de validade em detrimento de outra, uma vez que, com os devidos ajustes e elucidações, não há qualquer contradição ou contrariedade entre elas.
2. Validade e outros conceitos relacionados
Cremos ser insubsistente a distinção entre normas de estrutura e normas de conduta, pois toda e qualquer norma no sistema de direito positivo serve para regular condutas. O que se pode distinguir é que algumas dessas condutas ensejam a produção de novas normas.
As condutas que ensejam novas normas se chamam condutas nomogenéticas. Essas normas, como vimos, podem ser classificadas pelo observador como existentes ou inexistentes. O critério desta distinção é a efetividade, ou seja, a possibilidade de esta norma vir a ser aplicada por um tribunal jurisdicional.
Quando um tribunal se manifesta sobre uma norma qualquer, não se cogita mais de sua existência ou inexistência. A norma existe. Um órgão jurisdicional – participante – decide sobre a licitude ou ilicitude da ação nomogenética. Sob este ponto de vista, se uma norma existe no sistema jurídico é porque está em relação com outra norma. Se o participante – órgão jurisdicional – decidir que a norma foi criada de forma lícita, a norma, portanto, está em relação com a norma que prescreveu a sua competência.
O resultado desta relação é a aplicação da norma ao caso concreto. Norma criada licitamente é válida, vigente e eficaz até que outra norma prescreva de forma contrária.
Quando o órgão jurisdicional, porém, decide que a norma foi criada de forma ilícita, isso equivale a dizer que a norma irregular não está em relação com a norma de competência, mas sim com a que sanciona o exercício inadequado da atividade nomogenética.
A norma sancionatória tem como hipótese o descumprimento da relação jurídica de competência tributária (-c). É a violação daquilo que dispõem os condicionantes materiais da norma de competência que justifica a aplicação da norma sancionatória de competência. Em meio aos signos de sua composição, é possível ler que: violada a relação de competência – R(S.M) –, deve-se imputar uma relação entre o destinatário da norma e o Estado jurisdição. O objeto desta relação será a norma que prescreve a não aplicação da norma criada ilicitamente. Essa norma é, também, chamada de norma anulatória.
O âmbito material (M) das normas anulatórias consistirá na determinação de que não mais seja válido, vigente ou eficaz o dispositivo conflitante. Esses efeitos, conforme veremos, variam de caso a caso. Nunca é demais ter presente que a norma anulatória é produzida para restringir um ou mais dos âmbitos de vigência ou eficácia da norma ilegítima, justamente naquele ponto em que é conflitante e que, em face do conflito, provoca prejuízos aos sujeitos de direito.
2.1. Validade formal e validade material
Uma norma de competência, em sentido estrito, fundamenta a validade de duas outras normas jurídicas: o instrumento introdutor e a norma introduzida. Há licitude quando as normas criadas se ajustam ao que prescreve a norma de competência.
Sob esta perspectiva, a de existirem dois tipos de normas introduzidas, é possível a existência de dois tipos de incompatibilidade, sendo uma delas entre o instrumento introdutor com o antecedente da norma de competência, e outra a da norma introduzida com o consequente da norma de competência. Para um caso e outro, a doutrina convencionou empregar os termos vício de forma e vício de matéria ou, como preferem alguns, invalidade formal e invalidade material.
Certamente, não se há de falar da existência de vício de forma, pura e simplesmente, ou em vício de matéria. Isto porque toda matéria existe em função de uma forma e vice-versa. A forma só ganha sentido quando conectada com a matéria. Isso não significa negar a existência de vícios de uma ou de outra espécie. O critério para separar uma validade da outra está, pois, no tipo de incompatibilidade existente.
Quando a antinomia é entre instrumento introdutor e antecedente da competência, há vício de forma. A incompatibilidade com o sistema de direito positivo compromete o próprio veículo introdutor, atribuindo a mesma sorte a todos os elementos que foram inseridos pelo instrumento introdutor.
De outra parte, naquilo que é de cunho exclusivamente material, o vício de invalidade poderá ser imputado apenas ao enunciado prescritivo conflitante, sem prejuízo dos demais elementos que integram o texto em harmonia com a competência.
2.2. Validade, invalidade e seus efeitos sobre a vigência das normas
A validade não é um atributo da norma, mas sim da relação que ela mantém com o sistema jurídico. Quando essa relação se dá entre a norma e a respectiva norma de competência, fala-se que a norma é válida. Porém, quando a relação ocorre entre norma e aquela que prescreve a sanção pelo exercício indevido da norma de competência, temos a invalidade. Validade e invalidade são, pois, juízos juridicamente relevantes, presentes no sistema de direito positivo.
O sistema jurídico prescreve tanto os efeitos da validade quanto os efeitos da invalidade. Aquilo que está fora do sistema é o juridicamente irrelevante, o inexistente, não o inválido.
Pois bem, vigência é o atributo da norma válida que está apta a regular condutas. Neste sentido, Paulo de Barros Carvalho não deixa dúvida ao ensinar que:
“Viger é ter força para disciplinar, para reger, para regular as condutas inter-humandas sobre as quais a norma incide, cumprindo, desse modo, seus objetivos finais. É, agora sim, uma propriedade de certas regras jurídicas que estão prontas para propagar efeitos, tão logo aconteçam, no mundo social, os fatos descritos em seus antecedentes. Na verdade, existem normas que pertencem ao ordenamento positivo, mas não dispõem dessa aptidão”.16
Essa aptidão de a norma produzir efeitos pode ser percebida em quatro dimensões: a subjetiva, envolvendo os sujeitos que tem o seu comportamento disciplinado pela norma; a espacial, que delimita o local onde a norma pode irradiar seus efeitos; a temporal, que delimita o início e o fim da vigência da norma no tempo; e a material, em sentido estrito, que é o comportamento disciplinado pela norma (i.e., pagar tributo, entregar declarações, pagar sanções).
Ao ingressar com presunção de validade no sistema de direito positivo, toda norma jurídica possui esses quatro âmbitos de vigência.
Ao estabelecer contato com outras normas no sistema de direito positivo, um ou alguns desses âmbitos podem ter sua abrangência ampliada ou reduzida. A revogação de uma norma, por exemplo, é feita por uma norma jurídica que prescreve um limite temporal à vigência da norma.
A norma sancionatória de competência, quando editada em caráter geral (i.e., ADI, ADECON, ADPF), também pode prescrever um termo para a vigência temporal de uma norma produzida de forma ilícita. Diferente da revogação, essas normas são produzidas de forma condicionada; exigem para a sua edição processo judicial, demonstração de incompatibilidade entre norma inferior e a respectiva competência e prejuízo a direito e dever do proponente.
Nesses casos, porém, a decisão anulatória de norma inconstitucional – fruto da positivação da norma anulatória de competência – pode ter efeitos retroativos (ex tunc) e prospectivos ou apenas prospectivos (ex nunc). Tudo depende do que prescrever a norma sancionatória de competência.
Pois bem, como se pode perceber a partir dos exemplos que acabamos de apresentar, a vigência da norma pode ser para o passado e para o futuro, apenas para o passado ou apenas para o futuro. Quando ocorre de a norma estar apta a produzir efeitos plenos – passado e futuro –, afirmamos, com fundamento nas lições de Paulo de Barros Carvalho,18 existir vigência plena. Porém, há casos em que essa vigência volta-se apenas para o passado ou apenas para parte do passado ou, ainda, do futuro. Nessas hipóteses há apenas vigência parcial.
A aplicação da norma secundária de competência pode prescrever, em face de norma ilícita, que a vigência dessa norma seja suspensa de forma plena (passado e futuro) ou de forma parcial (futuro, apenas). Porém, só podemos falar de suspensão de vigência quando sua prescrição é geral (erga omnes). Caso contrário, teremos norma que dispõe apenas sobre a eficácia da norma.
Só podemos falar que a norma sancionatória suspendeu a vigência de uma norma ilícita quando seus efeitos são erga omnes. Nos demais casos, há apenas suspensão da eficácia. Isso porque só a decisão com efeitos gerais suspende a aptidão da norma para disciplinar condutas.
Noutras situações, onde a norma sancionatória incide para evitar que a norma ilicitamente produzida projete seus efeitos, temos apenas a suspensão da eficácia normativa. E o que se pode definir por eficácia? O juízo de eficácia analisa a produção de efeitos de uma norma. Paulo de Barros Carvalho19 propõe seja a eficácia desdobrada em três análises, denominadas de eficácia social, técnica e jurídica.
A eficácia jurídica ocorre com a incidência da norma.20 A eficácia técnica ocorre quando, existindo norma válida e vigente, a norma dispõe de todos os elementos necessários à sua incidência.21 A social, por fim, é o juízo de modificação das condutas sociais aos padrões prescritos por lei.22 Para simplificar nossa análise, nos restringiremos a analisar a eficácia jurídica, ou seja, se há subsunção do fato à norma e se há, também, a respectiva imputação de relações jurídicas.
Seja qual forma a espécie de norma sancionatória de competência, sempre que suas prescrições não tenham efeito erga omnes, teremos uma norma que impede outra norma de produzir seus efeitos regulares. Noutras palavras, a eficácia da norma sancionatória é prescrever a ineficácia da norma ilícita. E só se pode falar de ineficácia, quando os efeitos são previstos, apenas, para as partes de um processo (erga simgulum) e não erga omnes.
3. Síntese das posições sobre existência, validade, invalidade, vigência e eficácia
Com fundamento nas ideias expostas ao longo deste trabalho, podemos afirmar que: i. o observador do sistema jurídico pode afirmar se uma norma existe ou não; ii. existir significa poder ser apreciada pela jurisdição – esse é um critério de efetividade ou de relevância jurídica; iii. o juízo de existência como algo distinto de validade só é possível para quem observa o sistema jurídico; iv. para quem é participante (i.e., órgãos jurisdicionais), só existem normas válidas ou inválidas; v. válida é a norma produzida de acordo com a norma de competência; o efeito da validade é a vigência e a eficácia, nos termos previstos pela própria norma; vi. invalidade é a relação da norma com a norma sancionatória da competência; vii. a aplicação desta norma sancionatória pode ensejar suspensão da vigência, e com ela da eficácia, quando a decisão for geral, de forma plena (ex tunc) ou parcial (ex nunc); viii. a sanção pelo descumprimento da competência pode projetar, tão somente, a suspensão da eficácia da norma se os efeitos forem projetados apenas entre as partes do processo. É o que apresentamos a seguir no quadro sinótico:
Essas são, portanto, as principais perspectivas semânticas possíveis sobre o tema da validade, vigência e eficácia.
Notas
1 “(…) Quando se diz: ‘uma norma vale’, admite-se essa norma como existente. ‘Validade’ é a específica existência da norma, que precisa ser distinguida da existência de fatos naturais, e especialmente da existência dos fatos pelos quais ela é produzida” (KELSEN, Hans. Teoria geral das normas, p. 3).
2 “Para que algo valha é preciso que exista. Não tem sentido falar-se de validade ou de invalidade a respeito do que não existe. A questão da existência é questão prévia. Somente depois de se afirmar que existe é possível pensar-se em validade ou em invalidade” (PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado, p. 7).
3 “(...) somente os fenômenos jurídicos no sentido mais restrito – a aplicação do direito pelos tribunais – são decisivos para determinar a vigência das normas jurídicas. (...) A efetividade que condiciona a vigência das normas só pode, portanto, ser buscada na aplicação judicial do direito, não o podendo no direito de ação entre indivíduos particulares” (ROSS, Alf. Direito e justiça, p. 60).
4 “(...) Eficacia es condición de la validez de una norma jurídica, a saber, en el sentido de que uma norma jurídica pierde su validez si deja de ser eficaz o si pierde su eficácia. Eficácia tiene que añadir-se a la ‘puesta-en-validez’ de una norma jurídica para que ésta no pierda su validez. No para adquirir la validez, sino para seguir siendo válida, una norma jurídica tiene que ser eficaz. Pues una norma jurídica adquiere su validez ya antes de poder ser eficaz; un tribunal aplica en un caso concreto una ley recién promulgada y que, por lo tanto, no pudo todavía ser eficaz, aplica normas jurídicas válidas. Pero una norma jurídica no es considerada como válida si permanece durante um largo tiempo ineficaz” (KELSEN, Hans. Validez y eficacia del derecho, p. 72).
5 ALEXY, Robert. El concepto y la validez del derecho, passim.
6 Segundo Paulo Roberto Lyrio Pimenta, a validade pode ser observada a partir de dois modelos teóricos: “No primeiro, a validade é tida como sinônimo de existência da norma. Dizer que a norma vale significa afirmar que esta pertence a determinado ordenamento jurídico. Norma válida é aquela produzida pela autoridade competente, segundo o procedimento previsto em lei. Destarte, nesta linha de posicionamento, a validade é a essência da norma, desprezando-se em sua análise o conteúdo da regra jurídica. Outro modo de enxergar o problema é entender a validade como predicado, como atributo da norma jurídica. Assim sendo, trata-se da conformidade da norma com o ordenamento jurídico, razão pela qual se separa, em tal modelo, dentro do mundo jurídico, os planos da validade e o da existência. A validade é vista, destarte, como qualidade, como algo que se agrega ao objeto – norma jurídica –, e não como sua própria essência” (PIMENTA, Paulo Roberto Lyrio. Normas de competência e o controle de validade da norma impositiva tributária. Segurança jurídica na tributação e Estado de Direito, p. 840).
7 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência, p. 57.
8 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, p. 220.
9 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado, p. 8.
10 “Contrariamente a la opinión extendida entre los teóricos del derecho, distingo cuidadosamente la validez de la ‘existencia’ (de una norma, de una disposición o de una fuente). Es condición necesaria para que una norma sea válida que sea conforme a todas las normas que regulan su creación. Para que una norma exista en el ordenamiento, en cambio, no es preciso tanto: es suficiente que sea creada por una autoridad normativa prima facie competente para crear ese tipo de normas. En otros términos, se dice que una norma, disposición o fuente es ‘existente’ cuando ha sido creada de conformidad (no a todas, sino incluso sólo) a algunas de las normas que regulan su creación” (GUASTINI, Ricardo. Distinguiendo, p. 320).
11 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado, p. 7.
12 VILANOVA, Lourival. Causalidade e relação no direito, p. 322.
13 ROSS, Alf. Direito e justiça, p. 66.
14 ROSS, Alf. Direito e justiça, p. 60.
15 ALEXY, Robert. El concepto y la validez del derecho, p. 31.
16 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência, p. 58.
17 A revogação consiste na delimitação do âmbito temporal de uma norma editada para viger por prazo indeterminado.
18 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência, p 58.
19 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência, p 59.
20 Já ‘eficácia jurídica’ é o mecanismo de incidência, o processo pelo qual, efetivando-se o fato relatado no antecedente, projetam-se os efeitos prescritos no consequente. É o fenômeno que acontece com as normas vigentes, sempre e quando os fatos jurídicos se instalam. Tudo por força da causalidade jurídica, decretada pela imputação normativa” (CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência, p. 59).
21 “As normas jurídicas são vigentes, os eventos do mundo social nelas descritos se realizam, contudo as regras não podem juridicizá-los e os efeitos prescritos também não se irradiam. Falta a essas normas ‘eficácia técnica’ (CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência, p. 59).
22 “A eficácia social ou efetividade diz com a produção das consequências desejadas pelo elaborador das normas, verificando-se toda vez que a conduta prefixada for cumprida pelo destinatário” (CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência, p. 60).
Referências
ALEXY, Robert. El concepto y la validez del derecho. Barcelona: Gedisa, 2004.
CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2006.
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Autor: Tacio Lacerda Gama
GAMA, Tacio Lacerda. Teoria dialógica da validade: existência, regularidade e efetividade das normas jurídicas. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Teoria Geral e Filosofia do Direito. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga, André Luiz Freire (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017.
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