Fruto da reforma de 1984, o caput do artigo 49 do Código Penal, depois de esclarecer que a pena de multa consiste no pagamento ao fundo penitenciário de quantia fixada na sentença e calculada em dias-multa, estabelece regra referente à quantidade desses dias: “Será, no mínimo, de 10 (dez) dias e, no máximo, de 360 (trezentos e sessenta) dias-multa”.
Os dois parágrafos do mesmo artigo contêm regramentos sobre o valor de cada dia-multa, bem assim acerca de sua atualização aquando de sua execução.
Doutrinariamente ― e em suma exemplificativa ―, preconiza-se que, na eleição do número de dias-multa, entre 10 e 360, “deve-se levar em conta a gravidade do delito, as circunstâncias judiciais, as circunstâncias legais e, inclusive, as majorantes e minorantes”[1]. Ou: “(...) Determina-se o número de dias-multa entre o mínimo de dez e o máximo de trezentos e sessenta dias. Para a escolha desse número de dias, deve-se atentar para a natureza mais ou menos grave do crime (pois não há mais cominação particular para cada delito), para as circunstâncias judiciais que levarão à pena-base, para as agravantes atenuantes, para as causas de aumento e de diminuição da pena cabíveis etc.”[2].
Dito de outro modo: estabelece-se o número de dias-multa entre 10 e 360 levando-se em linha de conta, dentre outros critérios de individualização na pena, a gravidade do crime, obedecendo-se o princípio da proporcionalidade, pois não mais subsiste a cominação individual para cada crime, como ocorria no sistema anterior.
E, pelo princípio da proporcionalidade (abstrata), quando da cominação da pena, o legislador aprecia maduramente a relação entre a gravidade da ofensa ao bem jurídico e a pena que deverá ser imposta ao infrator.
E aqui se estabelece um discordante posicionamento em relação aos defensores da simplista ideia de que, à pena mínima privativa a um tipo penal, corresponde o número mínimo de dias-multa (10 dias), como se houvesse lógica nesse proceder. Ou seja: a) pena mínima de dois anos de reclusão: 10 dias-multa; b) pena mínima de quatro anos de detenção: 10 dias-multa.
E, à ausência de argumentação para essa relação ilógica estabelecida, transferem para a fixação do valor do dia-multa o critério diferenciador, quando de etapa seguinte se trata (na aplicação da pena de multa).
O assunto começou a chamar a atenção de alguns magistrados da 2ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Paraná no primeiro semestre de 2012, quando se apreciava a Apelação Criminal 877.368-2, da 10ª Vara Criminal do Foro Central da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba.
Em sentença lavrada em 9 de agosto de 2011, o juiz de Direito Marcelo Wallbach Silva, diante da condenação do réu na pena mínima legal de dois anos de reclusão pela prática do delito do artigo 14, caput, da Lei 10.826/2003, aplicou-lhe a multa de 24 dias-multa, ao valor unitário de um trigésimo do salário mínimo, assim fundamentando a eleição dos dias-multa: “Tendo em vista que o Código Penal estabelece a aplicação de, no mínimo, dez (10) e, no máximo, 360 (trezentos e sessenta) dias-multa, e considerando que 360 meses corresponderiam à pena máxima fixada no Código Penal, qual seja: 30 anos de reclusão, a pena de multa ora fixada segue a mesma lógica, motivo pelo qual corresponde à quantidade de meses em que o acusado é condenado”.
Conforme o entendimento do magistrado, a gravidade do crime fora estabelecida abstratamente pelo legislador (dois anos de reclusão), ao Estado-juiz cabendo fixar os dias-multa de acordo com o mínimo e máximo previsto no artigo 49 do Código Penal, adotando como parâmetro o número de meses equivalentes a 360 dias (30 anos, pena máxima do nosso CP).
O magistrado relator do recurso, de ofício, e adotando o princípio da proporcionalidade, diminuía o número de dias-multa para 10, dizendo inexistir qualquer circunstância que pudesse autorizar a exacerbação para 24 dias-multa, como decidira o magistrado de primeiro grau.
O magistrado revisor, desembargador Valter Ressel, em voto divergente que marcou época naquele órgão colegiado, assim registrou seu entendimento:
“O réu não pediu a redução do número de dias-multa e, para fixá-lo, o magistrado sentenciante valeu-se da ‘mesma lógica’ adotada pelo Código Penal, que, ao prever para a pena pecuniária um mínimo de 10 e um máximo de 360 dias- multa, e, para a pena corporal, o máximo de 30 anos de reclusão, está a indicar que o número de dias-multa deve corresponder ao número de meses da condenação corporal (30 anos x 12 meses =; 360 meses = 360 dias-multa).
Trata-se de um critério lógico e que não deixa de atender à recomendação geral, da doutrina e da jurisprudência, no sentido de que, também para a fixação da quantidade de dias-multa, devem ser levadas em conta as circunstancias judiciais (art. 59 do CP), na medida em que, em se mantendo uma correspondência dos dias-multa com o número de meses da pena corporal, estar-se-á considerando tais circunstâncias, posto que elas são consideradas na fixação da pena corporal.
E, com maior margem de acerto e de justiça do que simplesmente fixar o número de dias-multa sempre no seu patamar mínimo (10 dias), para qualquer tipo de crime apenado cumulativamente com a pena de multa, independentemente de sua gravidade, sempre que for fixada a pena corporal no seu patamar mínimo. Crimes graves como o de roubo ou de extorsão, por exemplo, com penas mínimas de 04 anos de reclusão, teriam o mesmo número de dias-multa (10 dias) que crimes leves como o de furto simples ou de apropriação indébita, que têm penas corporais mínimas de 01 ano de reclusão. Tais situações incoerentes e iníquas com certeza não concorrerão com o critério adotado pela sentença recorrida, pois teriam os dias-multa fixados de modo coerente, isonômico e justo (...).
O princípio da proporcionalidade que é utilizado como argumento por aqueles que entendem que o número de dias-multa deve ser sempre o mínimo legal (10 dias) toda vez que for aplicada pena corporal no mínimo legal, independentemente da gravidade do crime e da pena mínima prevista em abstrato, revela-se inadequadamente aplicado, quando aplicado nesses termos, data vênia, eis que esse princípio quer resguardar um equilíbrio entre a quantidade da pena e a gravidade do delito praticado. E não se terá esse equilíbrio se, nos exemplos de crimes graves e leves retro citados, sempre forem aplicados números de dias-multa iguais, para uns e para outros, toda vez que a pena corporal respectiva for aplicada no mínimo legal, penas corporais essas em quantitativos bastante desiguais (...). Aplicação equivocada e, ainda, com ofensa ao princípio da isonomia: situações desiguais tratadas igualmente”.
Por maioria, o entendimento do desembargador Valter Ressel prevaleceu naquele caso concreto, e, por um bom tempo, a 2ª Câmara Criminal do TJ-PR o adotou uniformemente, o que já não acontece atualmente.
Ainda que se tratasse de manter o posicionamento de um magistrado de primeiro grau, essa interpretação, ainda adotada isoladamente naquele colegiado, foi batizada de “Sistema Valter Ressel”, uma valiosa contribuição para que se analise criticamente a regra cotidiana, abraçada por boa parte da jurisprudência, de que, sendo mínima a pena privativa de liberdade, deverá ser fixado sempre o número mínimo (10 dias) de dias-multa, olvidando-se que a pena em abstrato modula a gravidade do delito. Ademais, o artigo 49 do Código Penal não estabelece essa correspondência.
O número de dias-multa, então, deve ser fixado de acordo com a gravidade do delito, esta materializada na pena mínima e máxima a ele cominadas. E, a cada mês de pena, um dia-multa, evitando-se as injustiças apontadas no histórico voto do desembargador Valter Ressel.
[1] BITENCOURT, Cezar Roberto. Código Penal Comentado, 4ª ed., São Paulo: Saraiva, 2007, p.200.
[2] DELMANTO, Celso et alii. Código Penal Comentado, 7ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 175.
José Maurício Pinto de Almeida é desembargador do Tribunal de Justiça do Paraná.
Fonte: Conjur
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