quarta-feira, 18 de abril de 2018

Coisa julgada no NCPC: limites objetivos, riscos e insegurança jurídica

Em minha coluna anterior aqui no JOTA, tratei do conceito de coisa julgada e da oportunidade perdida que tivemos para afastar polêmicas quanto a esse complexo instituto[1].

Mas, pior do que a oportunidade perdida, o fato é que – no meu entender, por certo – as novidades acerca da coisa julgada no NCPC conseguiram tornar ainda mais complexo e inseguro o sistema. Assim é que, no tocante aos limites da coisa julgada, o quadro na verdade piorou se comparado ao Código anterior.

Nesta coluna, tratarei dos problemas relativos aos limites objetivos da coisa julgada, sendo que na próxima falarei dos limites subjetivos, encerrando a trilogia quanto à coisa julgada no NCPC[2].

Por limites objetivos entende-se qual parte da decisão judicial é coberta pela coisa julgada. Vale lembrar que os requisitos ou elementos da sentença são o relatório, fundamentação e dispositivo (NCPC, art. 489). O Código preceituava que apenas o dispositivo era coberto pela coisa julgada. No CPC/2015, essa previsão não foi repetida.

O caput do art. 503 é bastante claro e traz ótima redação (mais técnica que a do CPC/1973): “A decisão que julgar total ou parcialmente o mérito tem força de lei nos limites da questão principal expressamente decidida”. O pedido formulado pelo autor, na petição inicial, é a questão principal a ser apreciada pelo juiz, quando da prolação de uma decisão de mérito. Portanto, em regra, somente o que estiver no dispositivo da sentença (e que reflete o pedido da inicial) é que será coberto pela coisa julgada.

Se tivéssemos somente o caput do art. 503, o Código, a situação seria mais simples, mais prática e traria mais segurança jurídica a todos os litigantes – sempre, claro, segundo minha visão, sendo certo que há vozes em sentido contrário.

Mas há o § 1º no artigo 503, que inova em nosso modelo processual. Esse dispositivo traz a ampliação dos limites objetivos da coisa julgada. A partir de agora, não só a questão principal, mas também a questão prejudicial será coberta pela coisa julgada, desde que observados alguns requisitos.

Mas o que é a questão prejudicial?

A questão prejudicial não se confunde com as preliminares nem com a questão principal. A prejudicial é questão de mérito, mas não faz parte do pedido do autor (que é a questão principal, como visto acima). A prejudicial surge na contestação, com alguma alegação de mérito formulada pelo réu. E, do ponto de vista lógico, fica inviável ao juiz decidir a questão principal sem antes analisar essa questão prejudicial que surgiu no processo.

O grande exemplo para entender o tema: se o autor pede alimentos, e o réu afirma não ser pai, tem-se a paternidade como questão prejudicial em relação aos alimentos[3]. Outro exemplo: a cobrança de multa contratual (pedido da inicial / questão principal) por força da violação do contrato, sendo que na contestação o réu afirma que a cláusula ou o contrato são nulos (questão prejudicial).

No CPC/1973, se qualquer das partes pretendesse que a questão prejudicial fosse coberta pela coisa julgada, deveria propor a “ação declaratória incidental”, que deixa de ter previsão legal no novo sistema.

O que buscou o legislador com a alteração realizada? A resposta é simples: ampliar os limites objetivos da coisa julgada. Mas essa foi uma boa escolha? Para parte da doutrina, sim; para parte da doutrina, não (e, como já esse percebe, filio-me a essa corrente).

Vale destacar que essa divergência se refletiu durante a própria tramitação do NCPC: o atual art. 503, § 1º foi alterado nada menos que 5 vezes, cada qual em sentido oposto ao da anterior![4] Isso demonstra, por si só, como a inovação é polêmica.

Mas vejamos quais são os 5 requisitos para que a coisa julgada atinja também a questão prejudicial[5], independentemente de pedido das partes (NCPC, art. 503, §§ 1º e 2º):

(i) a questão prejudicial deve ser decidida expressa e incidentemente no processo;

(ii) da resolução da questão prejudicial deve depender o julgamento do mérito;

(iii) deve ter havido contraditório prévio e efetivo;

(iv) o juiz deve ser absolutamente competente para resolver a questão prejudicial como se principal fosse;

(v) só haverá coisa julgada na prejudicial se não houver restrições probatórias que impeçam o aprofundamento da análise da questão prejudicial.

Cada um desses requisitos traz sua parcela de debate e polêmica. Uns mais, outros menos. E tudo isso, portanto, traz insegurança a respeito dos limites de um instituto cuja principal finalidade é, exatamente, a segurança jurídica… É, sem dúvidas, uma grande contradição, e algo consideravelmente nocivo para a estabilidade das relações sociais.

Porém, considerando os limites desta coluna, vou me ater apenas ao primeiro requisito: o que significa dizer que a questão prejudicial deve ser “decidida expressa e incidentemente”? Em outras palavras: só o que consta do dispositivo ou também o que consta da fundamentação será coberto pela coisa julgada?

O “expressamente” aponta que a apreciação da prejudicial não pode ser implícita, mas necessariamente deverá ser enfrentada pela decisão judicial para ser protegida pela coisa julgada.

Parte da doutrina, especialmente a partir da palavra “incidentemente” entende que não é necessário que se indique, no dispositivo, que a questão prejudicial foi decidida[6]. Reverberando esse entendimento, o enunciado 438 do FPPC (Fórum Permanente de Processualistas Civis): “É desnecessário que a resolução expressa da questão prejudicial incidental esteja no dispositivo da decisão para ter aptidão de fazer coisa julgada”.

Contudo, para outra parte da doutrina, somente se constar expressamente do dispositivo é que a decisão da prejudicial será coberta pela coisa julgada[7]. Externando esse entendimento, o Enunciado 8 do Ceapro (Centro de Estudos Avançados de Processo): “Deve o julgador enunciar expressamente no dispositivo quais questões prejudiciais serão acobertadas pela coisa julgada material, até por conta do disposto no inciso I do art. 504 (artigo 503, § 1º)”.

Desde que o tema começou a ser debatido[8], filio-me à corrente que entende necessário que a questão prejudicial conste no dispositivo, considerando (i) a necessidade de segurança a respeito do que foi coberto pela coisa julgada (inclusive para se avaliar o interesse recursal), (ii) a vedação de decisões surpresa (pois, caso exista apenas menção ao assunto na fundamentação, as partes podem se surpreender, no futuro, quanto à existência de coisa julgada), (iii) o “incidentemente” se refere a não ser questão principal e não poder estar o tema apreciado em qualquer local da decisão e (iv) porque o art. 504, I afasta a coisa julgada da motivação – e seria algo consideravelmente subjetivo e passível de interpretação diversas diferenciar o que seria “mera motivação” ou “motivação que decide questão prejudicial capaz de ser coberta pela coisa julgada”. Resta verificar quando e como o STJ pacificará a questão. Até lá, resta ao profissional muita cautela.

Mas, se há dúvida a respeito de qual parte da decisão foi coberta pela coisa julgada, caberiam embargos de declaração para que o juiz esclareça qual o limite objetivo da coisa julgada?

De minha parte, seguramente que sim, pois compete ao juiz esclarecer os limites de sua decisão, sendo cabíveis declaratórios no caso de uma omissão como essa. Ora, compete ao magistrado que proferiu a sentença avaliar se estão presentes os cinco requisitos necessários para que a questão prejudicial seja coberta pela coisa julgada.

Porém, parte da doutrina aponta que isso não seria possível pois não caberia ao juiz do primeiro processo definir os limites da coisa julgada. Isso a partir do modelo norte-americano de issue preclusion, no sentido de que compete ao juiz de um eventual segundo processo avaliar a abrangência da coisa julgada decorrente da primeira decisão (é a posição, por exemplo, do colega de coluna aqui no JOTA Marcelo Pacheco Machado)[9].

Diante desse cenário absolutamente inseguro, o que resta às partes?

O cenário está muito instável. Para tentar trazer o mínimo de racionalidade e segurança, à luz do direito positivo (é certo que o melhor cenário seria nova alteração legislativa…), parece-me que a melhor solução (ou a única) é a seguinte: a própria parte formular um pedido para que a questão prejudicial seja coberta pela coisa julgada.

Mas se ação declaratória incidental não mais existe no NCPC, é possível à parte expressamente pleitear ao juiz que haja a apreciação da questão prejudicial com força de coisa julgada? Isso não estaria burlando a extinção da ação declaratória incidental? Creio que não.

Ora, se no NCPC o juiz pode apreciar a questão prejudicial mesmo sem pedido da parte, é óbvio que pode fazê-lo se a parte assim pedir. Mas não pela ação declaratória incidental, que deixou de existir. Isso pode ser feito por meio de reconvenção (se pelo réu) ou por nova demanda (seja pelo autor ou réu), distribuída por dependência, em que haverá pedido declaratório da parte quanto à questão prejudicial.

Esse entendimento foi acolhido pelo plenário das I Jornadas de Direito Processual Civil do CJF (Conselho da Justiça Federal), pelo enunciado 35: “Considerando os princípios do acesso à justiça e da segurança jurídica, persiste o interesse de agir na propositura de ação declaratória a respeito da questão prejudicial incidental, a ser distribuída por dependência da ação preexistente, inexistindo litispendência entre ambas as demandas (arts. 329 e 503, § 1º, do CPC)”. Vale destacar que esse enunciado foi proposto por mim, e tive o privilégio de vê-lo aprovado no referido evento.

Ou seja, há uma série de polêmicas envolvendo os limites objetivos da coisa julgada (qual parte da decisão é coberta pela coisa julgada). Enquanto essa polêmica persistir, o mais seguro é provocar o juiz – seja por embargos de declaração, seja por ação autônoma.

Vejamos os próximos capítulos dessa polêmica…

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[1] O texto pode ser acessado aqui: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/novo-cpc/conceito-de-coisa-julgada-no-novo-cpc-avancos-e-oportunidade-perdida-22012018.

[2] A questão é tratada com muito mais profundida na obra Comentários ao CPC/2015, Editora Método.

[3] Ainda que esse seja um bom exemplo didático, ele não é comum no cotidiano forense. Isso porque se ainda há dúvida quanto à paternidade, o que se tem é a investigação de paternidade cumulada com o pedido de alimentos.

[4] A evolução do processo legislativo foi a seguinte: (i) no Senado (PL n.º 166/2010): dispositivo e questão prejudicial são cobertos pela coisa julgada; (ii) na Câmara dos Deputados (PL n.º 8046/2010), Relatório Barradas: só o dispositivo é coberto pela coisa julgada; (iii) na Câmara dos Deputados, Relatório Paulo Teixeira: dispositivo e questão prejudicial são cobertos pela coisa julgada; (iv) texto base aprovado pela Câmara dos Deputados, no final de 2013: só o dispositivo é coberto pela coisa julgada e (v) na votação dos destaques ao Código, na Câmara dos Deputados, em março de 2014: dispositivo e questão prejudicial são cobertos pela coisa julgada.

[5] Para alguns, como há esses requisitos, tem-se agora a existência de “regimes jurídicos distintos” para a coisa julgada. Assim, haveria um regime para a coisa julgada da questão principal e outro para a coisa julgada da questão prejudicial. Nesse sentido, exatamente aqui nesta coluna, Marcelo Pacheco Machado, para quem o novo sistema acarreta a existência de duas coisas julgadas distintas: “coisa julgada comum” e “coisa julgada excepcional” (https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/novo-cpc/novo-cpc-que-coisa-julgada-e-essa-16022015). De minha parte, não parece necessário falar em coisas julgadas distintas ou regimes distintos de coisa julgada: há, simplesmente, requisitos distintos, mas a coisa julgada é a mesma.

[6] Nesse sentido, dentre outros, DIDIER JR., Fredie. Comentários ao novo Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2015. p. 767.

[7] Nesse sentido, dentre outros, MARINONI et al., O novo processo civil. São Paulo: RT, 2015. p. 593.

[8] Assim me manifesto desde o início da tramitação do NCPC, em 2011: Da ampliação dos limites objetivos da coisa julgada no novo Código de Processo Civil. Revista de Informação Legislativa, v. 190, p. 35-43, 2011 (revista essa disponível na internet, na íntegra: http://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/496922).

[9] É certo que conveniente, para a perfeita compreensão do tema, a incursão no modelo norte-americano de issue preclusion. Mas, da parte de quem conhece os dois sistemas, a inovação pelo caminho do issue preclusion, seguramente, não é adequada. É o que apontou o Prof. ANTONIO GIDI, radicado nos EUA, em artigo em coautoria com MARÍLIA ZANELLA PRATES e JOSÉ MARIA TESHEINER (Limites objetivos da coisa julgada no projeto de Código de Processo Civil: reflexões inspiradas na experiência norte-americana. Revista de Processo, n. 194, p. 101).

Luiz Dellore – Doutor e Mestre em Direito Processual pela USP. Mestre em Direito Constitucional pela PUC/SP. Professor do Mackenzie, FADISP e EPD, entre outros cursos. Ex-assessor de Ministro do STJ. Advogado concursado da Caixa Econômica Federal. Membro do IBDP e do Ceapro.

Fonte: Jota

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