O debate está sobre a mesa. O STF, no embalo das ações penais e das prisões de políticos e empresários de alto escalão, discute se a prisão após o julgamento da segunda instância é inconstitucional ou não. Entre outros fundamentos, o principal deles está no texto do artigo 5.º, LVII, da Constituição Federal, que estabelece: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
Então, decorrência da literalidade do dispositivo, aqueles que sustentam a tese de possibilidade da prisão somente após o trânsito em julgado – entenda-se, julgamento do STF – interpretam que só pode haver prisão a um “culpado”. Interpretação literal, desde logo, não é a mais inteligente e correta. Sobre ela deve prevalecer a interpretação lógica e sistemática.
A prisão tanto é permitida sem o trânsito em julgado que temos no ordenamento jurídico brasileiro, como em todos os países civilizados, a possibilidade de prisões provisórias (preventiva e temporária), antes mesmo do julgamento de mérito do juiz de primeira instância. E nos países civilizados, ademais, a prisão é decretada logo após a sentença de primeiro grau, sem necessidade de aguardar o julgamento da segunda instância. Não há nenhuma ilegalidade nisso, ao contrário, mostra-se cada vez mais necessária diante dos incontáveis desmandos dos agentes criminosos, que assistimos todos os dias, nas ruas, ao vivo e na mídia. Pior do que as assistir, sofremo-las, todos nós, cidadãos honestos. Aliás, se a Constituição Federal quisesse impedir eventual prisão antes do trânsito em julgado, simplesmente diria: ninguém será preso após a sentença de mérito até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória… Se a Constituição Federal assim não estabeleceu, foi porque não desejou, e a nós não é possível dar interpretação diversa.
Aliás, ainda há outra situação jurídica a referir: Se uma pessoa é presa em prisão preventiva durante todo o processo criminal, e ao final é absolvida por um juiz de primeira instância, imediatamente ela é colocada em liberdade (sequer referimos agora da segunda instância). Então, por que o contrário não se aplica? Se um acusado fica solto durante todo o processo criminal, e o juiz de primeira instância condena-o, por que ele não é imediatamente preso? Há, desde logo, um descompasso que a lógica não explica. Isso porque a interpretação mais lógica e sistemática da lei é que com a condenação do juiz ele deveria ser preso enquanto aguarda o recurso da segunda instância. Nos bancos da universidade, aprendemos que sentença “é o ato do juiz que, em primeiro grau de jurisdição, põe fim ao processo”. Então, se a sentença “põe fim ao processo”, julgando o mérito, deveria já gerar efeitos. No entanto, como vimos, no âmbito penal, não é assim, caso contrário aquele acusado que ficou solto, após a sentença condenatória, seria imediatamente preso (observados os fatores de cada caso concreto). E, assim, a sentença penal de primeiro grau passou a ser apenas uma mera “decisão interlocutória”, que fica aguardando o julgamento do segundo grau de jurisdição.
Se essa mesma “prática” for aplicada para se aguardar até o julgamento pelo STF, o Direito Penal deixa de existir na prática, porque não haverá pena a ser cumprida – já que incontáveis são os recursos cabíveis até o patamar mais alto do STF. Passará a se chamar, talvez, “Direito Postergatório Penal”, ou algo parecido…
Outra incoerência na prática do Direito Penal brasileiro é a decisão que indefere prisão preventiva de crimes como corrupção, lavagem de dinheiro, cartéis, fraudes a licitações e outros crimes de colarinho-branco, sob o fundamento de que “não foram praticados mediante violência ou grave ameaça”. Por que só os agentes que cometem crimes violentos devem ser presos preventivamente, se aqueles que praticam os crimes de colarinho-branco são os que geram, ao final, em grande parte, aquela violência e grave ameaça dos demais, inibindo-os direta e indiretamente de dotações estatais mínimas (saúde, educação, transporte etc.)?
A corrupção é, de fato, o principal problema criminal da sociedade brasileira, maior causador de uma sociedade criminológica.
Há basicamente quatro níveis de corrupção: 1. Corrupção episódica: nesta, o comportamento honesto é a norma, a corrupção é a exceção, e o funcionário público desonesto é disciplinado quando detectado; 2. Pequena corrupção: é aquela praticada por funcionários públicos mal pagos que acreditam que dependem de pequenos subornos do público para melhor alimentar e “educar” suas famílias; 3. Grande corrupção – Endêmica: caracterizada, exemplificadamente, por funcionários públicos de alto nível e políticos que tomam decisões que envolvem grandes contratos públicos ou projetos financiados por doadores. Essa forma é claramente motivada pela ganância pessoal. O dinheiro e os bens da corrupção desse nível geralmente são transferidos para os indivíduos corruptos ou para os cofres do partido político a que pertencem, para proporcionar-lhes luxo e riqueza. 4. Corrupção Sistêmica: neste último irreversível e degradado nível, os canais de prevaricação estão em toda e qualquer conduta, e estendem seus tentáculos para todos os lados porque da coleta de suborno e corrupção depende o sistema para a sua própria sobrevivência. Está em toda e em cada ação da vida humana. Exige-se e paga-se propina para tudo, desde os mais singelos aos mais complexos serviços – públicos e privados. Nesse nível, é a corrupção que alimenta o sistema e a vida social.
No âmbito do terceiro e quarto níveis estão, como formas de agir, o clientelismo e o favoritismo, as mais assumidas pelos chamados saqueadores do Estado, que se preocupam em se servir do Estado, em vez de servir o Estado. Eles se apossam criminosamente do dinheiro e dos bens públicos, como se privados fossem. São as piores formas de corrupção, porque são praticadas em nível de negócios do Estado, capazes de espalhar indiscriminadamente, atingindo também os degraus mais baixos do funcionalismo público, com a divisão das vantagens entre todos, incluindo e absorvendo até aqueles que, a princípio, não pensariam em se corromper (níveis “1” e “2”). São exatamente elas que provocam o rebaixamento do nível “3” para o “4”, de grande corrupção para a sistêmica. Consiste em método de generalização da mentalidade corrupta. Nelas, as pessoas são atraídas pelas vantagens a tal ponto que se forma uma teia de agentes públicos e privados que se auxiliam mutuamente, às custas do erário público; os primeiros retirando do Estado por meio de seus poderes para entregar aos segundos, seus “clientes”, os “favores” para que ambos possam obter as vantagens ilícitas. Não há nenhum compromisso com o serviço tampouco, menos ainda, com o resultado.
E o corrupto não para com as ações criminosas, mesmo diante de eventuais adversidades legais, porque ele acaba assumindo uma condição econômico-financeira irreal, para além dos seus ganhos próprios e honestos. Para frear essa conduta, ele precisa ser preso e dele serem retirados todos, absolutamente todos, os bens e valores que adquiriu por meio dos delitos.
Surge, então, a única alternativa para interromper o ciclo vicioso de metástase criminosa: é da ação mais que audaciosa dos honestos. Trata-se de decisão e efetiva prática para interromper esse ciclo corrupto-vicioso para que a sociedade não pereça de forma irreversível – na qual as pessoas honestas vão embora, procurando outros países onde prevaleça a honestidade, deixando para trás a sociedade daqueles que não puderam ir, ou daqueles desonestos que ficaram para seguir praticando suas desonestidades, até a criminalidade transformá-la em verdadeira selva, onde não existe mais o “Estado de Direito”, que também fica para trás. É como o triste abandono do barco que afunda, como última alternativa para não morrer afogado.
A estratégia anticorrupção, segundo estudos da ONU, tem como base quatro pilares: I – Desenvolvimento da economia; II – Reforma democrática; III – Sociedade civil forte, com acesso à informação e a missão de supervisionar o Estado; IV – Presença firme do Estado de Direito e aplicação rigorosa da lei.
Envolve, basicamente, uma conscientização e transformação da sociedade, que, entretanto, leva tempo. Muitos anos, décadas e muitas gerações são necessárias com atuação constante e ininterrupta. É preciso transformar a mentalidade de uma sociedade com viés corrupto para uma sociedade que seja absolutamente intolerante com a corrupção, em todos os níveis, da episódica à sistêmica.
Para que surta efeito, há necessidade imperiosa e inadiável de dois níveis de soluções: 1. Em curto prazo, para a situação de corrupção endêmica: por curto prazo, entenda-se: meses/anos. Nesse caso, o primeiro passo é o dever de proteção da sociedade, que exige a atuação firme, forte da Justiça, ou, usando o termo norte-americano, da Law Enforcement, com efetiva e rigorosíssima punição. Cárcere e confisco de bens são medidas imprescindíveis! Nem se diga de necessidade de ressocialização para corruptos que se encontravam perfeitamente integrados à sociedade, como os políticos e os empresários. Ressocialização é para aqueles que não tiveram essas oportunidades… 2. No longo termo, vale dizer, em décadas, para a solução definitiva, está a mudança de mentalidade com efetiva educação de respeito às leis e medo das punições.
Por isso, para além da interpretação lógica e sistemática da Constituição Federal, que deve se sobrepor à mera interpretação literal, a prisão após a segunda instância é imperiosa para interromper o ciclo criminológico e permitir a retomada da evolução da sociedade brasileira.
“Se enlameares a água limpa nunca encontrarás o que beber.”[1]
(Trata-se daqueles que querem subverter as leis.)
[1] Expressão extraída da peça Eumênides (Tragédia Grega) de Ésquilo (vv. 694s.).
Marcelo Mendroni
é Pós-doutor pela Università di Bologna (Itália). Doutor em Direito Processual Penal pela Universidad Complutense de Madrid. Especializado no trabalho contra Crime Organizado, Lavagem de Dinheiro e crimes econômicos. Promotor de Justiça no Ministério Público de São Paulo. Autor.
Fonte: Genjuridico.com.br
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