quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

Coisas da Língua

“Caos”, nos dicionários, é vocábulo com acepção de “vazio primordial de caráter informe, ilimitado e indefinido, que precedeu e propiciou o nascimento de todos os seres e realidades do universo” (Houaiss). Para o renomado dicionarista, o mesmo substantivo tem o sentido de “mistura de coisas em total desequilíbrio; desarrumação, confusão”.

Se o nobre leitor estivesse no trânsito de um grande centro urbano, às 18 horas, em uma sexta-feira, na véspera de feriado, é bem provável que conseguisse compreender a extensão das definições supracitadas, notando que a primeira acepção – atrelada ao “vazio ilimitado e indefinido” – não se apresenta fiel à realidade das grandes cidades, que estão mais próximas da “desarrumação” ou “confusão”, mencionadas no sentido complementar.

Curioso é perceber que o vocábulo “trânsito”, usado no sentido coloquial, designa a situação oposta àquela decorrente do verbo “transitar” – ir de um lugar para o outro. É que, quando se faz menção ao termo “trânsito”, pensa-se em uma realidade na qual não se pode ir para lugar nenhum. Pura contradição! É o intrigante “trânsito” sem um trânsito, de fato.

Não é difícil perceber que, em qualquer grande centro urbano, passando por Pequim, Roma, Dakar ou São Paulo, há algo em comum: o caos no trânsito. Os motoristas disputam, palmo a palmo, cada pedaço da rua, em uma verdadeira confusão urbana. Tem-se a nítida impressão que se assiste em “cidades de máquinas”, pertencentes aos automóveis e às motocicletas.

Vivendo em São Paulo, acabo engrossando a massa dos oprimidos e impacientes motoristas que transitam pela cidade. Há poucos dias, estava ao volante, naturalmente em marcha lenta, pensando no “inferno” do trânsito e em todos aqueles que ficam literalmente “presos” em seus veículos, quando me vieram à mente as sábias palavras de Sartre: “O inferno são os outros”. Olhando para os lados, dimensionava a caótica situação como produto de uma simples equação: a impaciência de cada motorista adicionada à irritabilidade de todos.

Vi que, a poucos metros dali, um motoboy discutia com um motorista de táxi. O motivo parecia ter sido a parada inopinada(1) do profissional do automóvel que, ao atender à solicitação imprevista de passageiro na calçada, parece não ter indicado a manobra com a seta. Era possível ouvir os gritos do motoboy:

– “Você parou sem dar a seta...e ainda parou à toa!!!”

E o taxista respondeu, entendendo o ataque como uma ofensa pessoal:

– “Quem é “à toa” aqui? Só se for você!...”

A propósito, ouvindo as hostilidades recíprocas, percebi a desconexão no diálogo. Aliás, não pude deixar de notar a utilização pelos contendores(2) do vocábulo “à toa”, em duas acepções diferentes.

É sabido que a expressão “à toa”, sempre escrita sem hífen, é locução adverbial, acompanhando o verbo, o adjetivo e o próprio advérbio. Por sua vez, será possível utilizar a mesma expressão “à toa” como locução adjetiva, estando ao lado de substantivo (Exemplos: sujeito à toa; sangramento à toa). Frise-se que a grafia desta última expressão apresenta-se sem o hífen em razão da modificação trazida pelo Acordo Ortográfico, uma vez que este veio substituir a forma hifenizada “à-toa” por “à toa”. Ainda que, na altercação(3) pública, os motoristas do táxi e da motocicleta tenham discutido sem se entenderem – utilizando cada um a expressão em uma acepção própria –, no plano da escrita ambos teriam que escrevê-la sem o hífen, ou seja, “à toa”.

Acompanhei a contenda com natural ar de reprovação. Sempre atribuí a conduta hostil das pessoas no trânsito à perda da noção de civilidade. O “trânsito” a que nos submetemos acaba sendo uma espécie de palco das relações sociais, expressando a individualidade do homem moderno e a dificuldade de lidar com o espaço público.

Aos poucos, os veículos se movimentavam. Os automóveis – ditos bens tradutores de praticidade, funcionalidade e, por que não dizer, de liberdade pessoal para alguns –, represavam os condutores, representando, sim, uma verdadeira falta de liberdade, diante do congestionamento monstro. Nesse passo, os motoristas buscavam desviar a atenção da monotonia, ouvindo música, olhando para os lados, entre outras formas.

Nesse momento, fixei o olhar na placa do veículo à minha frente: indicava a cidade de “Mogi-Guaçu”. Perguntar-se-ia: há algo de errado com a grafia do nome da cidade? Vamos analisar com vagar.

É que o topônimo(4) afeto à cidade paulista (“Mogi Guaçu”) apresenta nesta grafia uma impropriedade. O problema é duplo: “Mogi”, com -g e separação indevida das palavras.

Para a boa compreensão do tema, faz-se necessário conhecermos um pouco sobre a cidade vizinha (“Mogi Mirim”). Sua grafia correta, à luz das normas cultas, deveria ser Mojimirim – grafada com -j e sem hífen. Outros vocábulos há com o adjetivo “mirim”, que são grafados sem o hífen. São eles: mojimirinense, guamirim, Itapemirim, potimirim, quatimirim. O hífen somente deve aparecer se o elemento anterior à forma “mirim” acabar em vogal acentuada ou nasal. Exemplo: socó-mirim, cajá-mirim, tamanduá-mirim. Dessa forma, o nome da cidade paulista (“Mogi Mirim”) é inadequado. Aliás, o g em Mogi é de “gelar”... O recomendável seria, como se destacou, Mojimirim.

Voltando agora ao termo inicial, “Mogi Guaçu”, devemos notar que o antônimo de “mirim” é “-açu”. Assim, o nome recomendável para indicar a cidade ora analisada seria Mojiguaçu (com -j e sem o hífen), e não como vem grafado por aí. Tenho afirmado que, quanto a erros, de mirim a grafia de “Mogi Guaçu” não tem nada...

Naquele caos do qual não havia conseguido ainda escapar, procurava me ocupar, enquanto o tráfego se mostrava quase insuperável. Resolvi, assim, ligar o rádio para ouvir notícias e encontrei uma que tocava algo que aprecio: a música popular brasileira. Tocava na ocasião a canção “Fora de si”, de Arnaldo Antunes. Uma coincidência sem tamanho! A singular composição do autor mostra a perda da noção das outras pessoas e a loucura em si. Nos versos iniciais “Eu fico louco / eu fico fora de si / eu fica assim / eu fica fora de mim”, é possível perceber que há um desarranjo sintático gradual, que se desenrola à medida que o poema segue – eu fico... (1° verso); eu fico... (2° verso); eu fica... (3° verso); eu fica...fora de mim (4° verso). Com efeito, essa assimetria crescente representa o fato de que o sujeito vai ficando louco gradativamente, e os versos vão mostrando a relação gradualística da perda da consciência. Evidencia-se, portanto, que o compositor pretendeu problematizar a própria questão existencial em um poema de teor metalinguístico, ao usar uma linguagem que se volta para si mesmo. Achei a coincidência ímpar!

 A corroborar, diga-se que a metalinguagem é recurso deveras interessante. Nos versos magistrais de Antonio Carlos Jobim e Newton Mendonça, em “Samba de uma nota só” (“Eis aqui esse sambinha / Feito numa nota só / Outras notas vão entrar / Mas a base é uma só”), a metalinguagem se faz igualmente presente, à medida que o trecho é entoado em uma nota só. Experimente cantá-lo...

Como é grande o poder da música! Ainda mais se for de boa qualidade! Acabei, naquele momento, distraindo-me com a reflexão musical. E algo surpreendente começava a acontecer: os veículos se moviam com maior velocidade, e o tráfego passava a ter certa rapidez. No momento, pensei “oxalá(5) não pare novamente...”.

Por falar em “oxalá”, a rádio anunciava a próxima canção: “Opachorô”, de Gilberto Gil – uma composição que avoca o otimismo diante das situações desfavoráveis. Encontrando-me mais relaxado, e mais “otimista”, aprovei a rádio e aumentei o som. Os versos traziam o pertinente contexto: “Oxalá Deus queira / Oxalá tomara / Haja uma maneira / Deste meu Brasil melhorar (...)”.

Com tanta coincidência, concluí que aquele “trânsito”, que não tinha trânsito, estava repleto de gramaticalidade. São “coisas da língua”, como já dizia o mestre Paulinho da Viola.

Pequeno Dicionário Remissivo

1. Inopinada: súbita, de supetão, repentina;
2. Contendor: adversário, rival;
3. Altercação: discutir, polemizar, contender;
4. Topônimo: nome geográfico próprio de cidade, região, vila etc.
5. Oxalá: interjeição que expressa desejo que certa coisa ocorra; tem o sentido de tomara ou queira Deus.

Eduardo de Moraes Sabbag
Advogado, Professor e Autor de Obras Jurídicas, entre elas o "Manual de Direito Tributário" pela Editora Saraiva; Doutor em Direito Tributário, pela PUC/SP; Doutorando em Língua Portuguesa, pela PUC/SP; Professor de Direito Tributário, Redação e de Língua Portuguesa. Site e Redes Sociais: professorsabbag.

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