segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

Prisões de parlamentares e o Supremo

Há mais de um ano, a possibilidade constitucional de prisão de parlamentares se tornou uma realidade concreta e uma ameaça permanente para todos aqueles que são alvos de inquéritos e denúncias. Primeiro o ex-senador Delcídio do Amaral, depois o ex-deputado federal Eduardo Cunha, e mais recentemente as prisões dos deputados estaduais do Rio de Janeiro – entre  outros tantos pelo Brasil afora, menos notórios.

A projeção destes personagens colocou luz sobre o artigo 53, § 2º da Constituição que prevê que “os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável. Nesse caso, os autos serão remetidos dentro de vinte e quatro horas à Casa respectiva, para que, pelo voto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão”.

No atual contexto, em que se reivindica isonomia e o fim da impunidade, muitos descobrem que o foro privilegiado não é a única garantia especial dos membros do legislativo. Há sobre elas mais camadas de imunidades do que poderia supor a nossa vã filosofia republicana.

Os que lidam com a tarefa de interpretar a Constituição conhecem a máxima de que o texto não tem palavras inúteis. Ou não deveria ter. A todo conteúdo vernacular se busca encontrar um espaço de incidência e um sentido de eficácia. O problema surge quando o sistema como um todo deixa de fazer sentido.

Há um requisito aparentemente objetivo no dispositivo constitucional em questão que compromete em parte sua lógica: a Constituição fala em flagrante de crimes inafiançáveis como única hipótese de prisão de parlamentares.

Em 1988, quando foi promulgada, a fiança penal era um instituto em franco desuso. Ainda assim, a Constituição tratou da fiança em vários dispositivos, proibindo-a expressamente nos casos de racismo, crimes hediondos e equiparados. Naquele momento também vigorava ainda, no Código de Processo Penal, um parâmetro objetivo de inafiançabilidade: crimes cuja pena mínima fosse superior a 2 anos.

Mas desde 1977, com a Lei Fleury, a liberdade provisória passou a ser permitida, independentemente de fiança, para qualquer espécie de crime, mesmo para aqueles que a lei e a Constituição tornaram inafiançáveis.

A partir de 2011, a fiança recuperou um espaço útil no processo penal quando tornou-se uma cautelar alternativa à prisão preventiva e não ligada necessariamente a uma situação prévia de flagrante. Além disso, aboliu-se o critério da pena mínima como limite de afiançabilidade.

A partir de então o instituto da fiança atrelou-se de vez ao da prisão preventiva. Ser ou não inafiançável passou a ser um critério aferível somente caso a caso e não mais de forma genérica e abstrata.

Hoje, qualquer pessoa, presa em flagrante ou não, pode responder ao processo em liberdade, com ou sem pagamento de fiança, desde que não seja caso de prisão preventiva. Mas saber se é ou não caso de prisão preventiva depende do exame das circunstâncias e das provas concretas, tarefa típica da jurisdição.

A insistência do texto constitucional em torno da fiança no momento em que o instituto não tinha aplicabilidade nenhuma é algo que sempre intrigou os intérpretes.  Ainda assim, isso nunca chegou a ser um problema, já que a prerrogativa parlamentar ligada à prisão estava diretamente ligada a outra imunidade maior, posteriormente extinta:  parlamentares só podiam ser processados mediante autorização expressa da casa legislativa respectiva.

Se o deputado ou senador só podia ser processado com autorização de seus pares, nada mais natural que a prisão processual também estivesse submetida ao crivo político. Uma coisa decorria da outra. Parlamentares eram inatingíveis pelo sistema penal, pouco importando a natureza dos seus crimes – afiançáveis ou não, a menos que seus pares consentissem. E a história mostrou que quase nunca consentiam.

A necessidade de autorização prévia para a ação penal caiu em 2001, mas sobreviveu a necessidade do juízo político sobre prisões em flagrante de crimes inafiançáveis. Como um corpo sem alma. E é por esta razão, também, que tem levantado tantas controvérsias em sua aplicação. Porque não se encaixa mais no sistema.

É que a inafiançabilidade, como se viu, depende de saber se há ou não motivo para prisão preventiva. Mas somente o juiz da causa tem competência para decidir sobre a necessidade de uma cautelar de prisão. É ele que alcança a necessidade de preservar a instrução penal. É da visão que tem do conjunto das provas que pode advir a conclusão sobre ser ou não, a liberdade, uma ameaça à ordem pública. Sem contar o eventual sigilo que determinados dados do processo muitas vezes demandam, circunstância incompatível com uma votação parlamentar.

A aferição em concreto sobre a conveniência da prisão processual nada mais tem a ver com sistemas de freios e contrapesos. O Judiciário, hoje, é livre para processar, julgar e condenar o parlamentar, sem depender de autorização de ninguém. E se pode o mais – prestar a jurisdição plena, deve também poder deliberar sobre o menos – os incidentes acessórios, como as medidas cautelares.

Tudo para concluir que a decisão política sobre a prisão de parlamentares não faz mais sentido no ordenamento jurídico brasileiro. Não apenas porque afronta as aspirações republicanas, frutos da evolução democrática que vivemos nos últimos 29 anos, mas também porque não se encaixa mais no sistema constitucional e processual vigente, profundamente alterado após 1988.

Desde que as prisões de parlamentares deixaram de ser hipóteses excepcionalíssimas, as inconsistências do sistema têm se mostrado cada vez mais graves, gerando confrontos institucionais perigosos e indesejados.

Cabe ao Supremo apontar os limites destas irracionalidades e construir saídas. Das últimas vezes que tratou do assunto deu sinais divergentes e plantou inseguranças. É preciso corrigir os rumos. E é bom que seja logo.

Silvana Batini - Professora da FGV Direito Rio e Procuradora Regional da República

Fonte: Jota.info/

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