terça-feira, 8 de maio de 2018

Gastos públicos na ótica da sociedade e da Constituição

Sempre nos perguntamos em que são pautadas as escolhas feitas pelos governantes em relação aos gastos que serão realizados com o dinheiro público ao longo de sua gestão.

De fato, parte das suas prioridades acabam sendo antecipadas nas promessas de campanha eleitoral, em regra seguindo os ideais (político, econômico e social) de cada candidato. Uma vez eleitos e no exercício do cargo público – presidente, governador ou prefeito -, suas escolhas passam a ser pautadas também com base nas limitações orçamentárias e nos seus interesses políticos.

Não obstante, devemos nos indagar se a definição da despesa pública a ser prevista no orçamento público e posteriormente executada pelo governante é de natureza discricionária ou vinculada, e se atende aos anseios da sociedade e aos valores e direitos fixados na Constituição.

Recentemente, foi divulgada uma pesquisa de opinião pública1 acerca das prioridades mais urgentes sob o ponto de vista do cidadão brasileiro. Em primeiro lugar, 49,3% dos ouvidos declararam a sua preocupação em acabar com a corrupção; em segundo lugar, 45,4% disseram que a prioridade deveria ser melhorar a educação; em terceiro lugar, 42% afirmaram como urgente melhorar a saúde pública; em quarto lugar, 29,5% das opiniões preocuparam-se com a melhoria na segurança pública; na sequência, em percentuais menores, a atenção estava voltada para a geração de empregos, a redução dos impostos, o controle da inflação, o aperfeiçoamento da infraestrutura e outros.

Não nos espanta que o combate à corrupção esteja em primeiro lugar de preocupação, uma vez que a sociedade brasileira já compreende que o desvio ilegal de recursos públicos drena (para o bolso do corrupto) o dinheiro que deveria estar sendo empregado em todas as demais necessidades públicas, tais como educação, saúde e segurança, prioridades estas identificadas nesta pesquisa como majoritárias. A propósito do tema, já tive oportunidade, nesta Coluna Fiscal, de expor que, na perspectiva fiscal, a corrupção adquire natureza de despesa pública, sobretudo como custo adicional nos gastos públicos, pelo superfaturamento dos preços contratados (pois o empresário incorporará aos custos do contrato com a Administração Pública o valor a ser pago em corrupção).

Mas a manifestação popular exposta na referida pesquisa também está em linha com o texto constitucional, que cria direitos inúmeros para os cidadãos e, por decorrência, fixa deveres para o Estado, cuja efetivação dependerá de recursos financeiros que estejam previstos no orçamento público.

Podemos destacar alguns exemplos dessas previsões constitucionais. O texto do art. 6º categoricamente afirma que “são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”; mais adiante, o art. 194 expressamente define que “a seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social”; igualmente, o art. 196 prevê que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”; na mesma linha, o art. 204 estabelece que “as ações governamentais na área da assistência social serão realizadas com recursos do orçamento da seguridade social”; por sua vez, o art. 205 define que “a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”; o art. 208, ainda tratando da educação, prevê que “o acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo“ e ressalva que “o não oferecimento do ensino obrigatório pelo Poder Público, ou sua oferta irregular, importa responsabilidade da autoridade competente”; encontramos, no art. 215, a previsão no sentido de que “o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais”; ainda, o art. 217 prevê ser “dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não formais, como direito de cada um (…)”; com a mesma ênfase, o art. 225 reconhece que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.

Como sabemos, ao tempo da promulgação da Constituição de 1988, tais previsões funcionavam como meros parâmetros a serem seguidos e objetivos a serem atingidos pelo administrador público, indicando as prioridades na programação da realização das despesas públicas, fato que, por si só, já deveria conduzir as escolhas do governante.

Porém, atualmente, com o reconhecimento e solidificação da efetividade normativa dos preceitos constitucionais, e com a ampliação e o fortalecimento do exercício dos direitos de cidadania, já está consolidada no Direito contemporâneo brasileiro a possibilidade de o cidadão exigir do Estado – inclusive judicialmente – a realização dessas despesas públicas, especialmente quando se referirem a Direitos Sociais e Fundamentais.

Ademais, o próprio conceito de ‘discricionariedade’ dos atos administrativos passou nos últimos anos por uma forte revisão no seu conteúdo, perdendo a sua grande margem de subjetivismo e liberdade de escolha que até então lhe caracterizava, passando o seu mérito e motivação a estarem vinculados aos princípios e valores constitucionais no âmbito das decisões administrativas, condicionando as opções do governante através deste novel “poder-dever”.

Por isso, é legítimo afirmar ser possível entender que as despesas públicas são cada vez mais priorizadas e determinadas por comandos jurídicos, e cada vez menos consideradas deliberações de natureza política e discricionária. Ou seja, as despesas públicas não se originam, exclusivamente, de deliberações única e exclusivamente apoiadas nas convicções, ideologias e aspirações do governante, mas, sim, decorrem, em grande parte das vezes, das imposições existentes nas diversas prescrições normativas de nosso ordenamento jurídico, especialmente aquelas de índole constitucional. E ainda mais se estes dispositivos estiverem em sintonia com os anseios populares, fato refletido no resultado da aludida pesquisa de opinião.

Daí o porquê de se poder afirmar que emerge uma nova linha contemporânea ‒ à qual nos filiamos ‒ a entender que a natureza da despesa pública, tanto na sua escolha como na sua realização, é, em sua essência, de origem jurídico-constitucional.

Portanto, temos duas vozes – a da Constituição e a do cidadão – a clamar em total harmonia – como numa sinfonia de Beethoven – por uma priorização dos gastos públicos em saúde, educação e segurança pública, em detrimento de gastos supérfluos ou de secundária importância, como diuturnamente infelizmente vemos ocorrer.

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1 Fonte: Instituto Ideia Big Data.

Texto publicado originalmente no Jota

Marcus Abraham
Professor Adjunto de Direito Financeiro. Doutor em Direito Público. Mestre em Direito Tributário. MBA em Direito Empresarial. Desembargador Federal do TRF da 2ª Região. Ex-Procurador da Fazenda Nacional. Diretor da Escola da Magistratura Regional Federal da 2ª Região. Membro Correspondente da Academia Paulista de Letras Jurídicas.

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