A Lei 13.467, de 13 de julho de 2017, com início de vigência em 11 de novembro de 2017 (art. 6º), alterou a Consolidação das Leis do Trabalho e as Leis 6.019/1974, 8.036/1990 e 8.212/1991, a fim de adequar a legislação às novas relações de trabalho[1].
No presente texto, propõe-se examinar a constitucionalidade da atual previsão relativa à modificação das súmulas e outros enunciados de jurisprudência dos Tribunais do Trabalho.
As sessões de julgamento sobre estabelecimento ou alteração de súmulas e outros enunciados de jurisprudência devem ser públicas, divulgadas com, no mínimo, 30 dias de antecedência, e devem possibilitar a sustentação oral pelo Procurador-Geral do Trabalho, pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, pelo Advogado-Geral da União e por confederações sindicais ou entidades de classe de âmbito nacional (art. 702, § 3º, da CLT, incluído pela Lei 13.467/2017).
O estabelecimento ou a alteração de súmulas e outros enunciados de jurisprudência pelos Tribunais Regionais do Trabalho devem observar o disposto na alínea f do inciso I e no § 3º do art. 702 da CLT, com rol equivalente de legitimados para sustentação oral, observada a abrangência de sua circunscrição judiciária (art. 702, § 4º, da CLT, acrescentado pela Lei 13.467/2017).
Argumenta-se, entretanto, que essas previsões, decorrentes da reforma trabalhista, seriam inconstitucionais, por afrontarem, em essência, a autonomia dos tribunais (arts. 96, inciso I, e 99 da Constituição da República), a independência do Poder Judiciário e a separação dos Poderes (art. 2º da Constituição da República).
É certo que os dispositivos em estudo estabelecem maior rigor quanto aos requisitos exigidos para a aprovação e modificação de súmulas e outros enunciados de jurisprudência trabalhista.
Com isso, no plano da crítica ao Direito legislado, naturalmente, pode-se não concordar com a nova determinação legal, no sentido de que não seria a mais adequada em face da atual dinâmica social, econômica e jurídica.
De todo modo, segundo o art. 926 do CPC de 2015, os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência, bem como mantê-la estável, íntegra e coerente.
A estabilidade da jurisprudência, portanto, é exigida como forma de se respeitar a segurança jurídica, essencial ao Estado Democrático de Direito (art. 5º, caput, da Constituição Federal de 1988).
Nesse contexto, o art. 926, § 2º, do CPC determina que ao editar enunciados de súmula, os tribunais devem ater-se às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua criação.
Vale dizer, há necessidade de precedentes para que, em momento posterior, possa ocorrer a edição de súmulas, exigência esta que, pelo mesmo motivo de segurança nas relações jurídicas, revela-se imprescindível também para a sua modificação.
A uniformização da jurisprudência, evidentemente, impõe que ocorra a divergência entre julgados, não cabendo ao tribunal editar súmulas e orientações jurisprudenciais de forma prematura e açodada, mas apenas após o amplo debate, inclusive perante as instâncias inferiores, em observância do contraditório, permitindo a consolidação das teses jurídicas que se mostrarem as mais adequadas.
Frise-se que a jurisprudência passou a ter conotação obrigatória e força nitidamente vinculante em diversas situações, como se observa nos arts. 489, § 1º, inciso VI, e 927 do CPC de 2015, o que confirma a sua relevância cada vez maior na atualidade, inclusive na esfera trabalhista (art. 769 da CLT e art. 15 do CPC de 2015), mas também impõe maior cautela na formulação dos seus enunciados.
Logo, a jurisdição, exercida pelos tribunais, não pode legislar, em respeito ao princípio da separação de poderes. Nesse sentido, são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário (art. 2º da Constituição Federal de 1988).
Vejamos, ainda assim, os dispositivos da Constituição Federal de 1988 apontados pela tese que defende a inconstitucionalidade dos art. 702, inciso I, alínea f, e §§ 3º e 4º da CLT, incluídos pela Lei 13.467/2017.
O art. 92 da Constituição da República estabelece quais são os órgãos do Poder Judiciário, não tendo qualquer pertinência com o tema em exame, qual seja: a edição e a modificação de súmulas e outros enunciados de jurisprudência.
O art. 96, inciso I, a, da Constituição Federal de 1988 dispõe que compete privativamente aos tribunais “eleger seus órgãos diretivos e elaborar seus regimentos internos, com observância das normas de processo e das garantias processuais das partes, dispondo sobre a competência e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos”.
Esse dispositivo constitucional, apesar de reconhecer, como não poderia deixar de ser, que cabe ao próprio tribunal a aprovação de seu regimento interno, não trata da questão voltada à construção da jurisprudência, nem estabelece que os requisitos para a edição e modificação de súmulas e orientações jurisprudenciais devam ser previstos, exclusivamente, no regimento interno (e não em lei).
A matéria relativa à competência e ao funcionamento dos órgãos jurisdicionais e administrativos dos tribunais, mencionada no art. 96, inciso I, a, da Constituição Federal de 1988, ao versar sobre os regimentos internos, como é evidente, em nada se identifica com a aprovação e alteração de súmulas e outros enunciados de jurisprudência.
Em verdade, o referido preceito constitucional, ao determinar que compete aos tribunais elaborar os seus regimentos internos, é expresso no sentido de que devem ser observadas as normas de processo e as garantias processuais das partes.
As “normas de processo” são previstas em lei, de competência privativa da União, conforme art. 22, inciso I, da Constituição Federal de 1988, como é o caso dos art. 702, inciso I, alínea f, e §§ 3º e 4º da CLT, e não em normas administrativas, regimentais ou internas dos tribunais.
Na mesma linha, as “garantias processuais das partes” são aquelas decorrentes de normas constitucionais e legais, em respeito ao contraditório, à ampla defesa e ao devido processo legal (art. 5º, incisos LIV e LV, da Constituição da República).
Não cabe aos tribunais, assim, em afronta ao princípio da separação dos Poderes (art. 2º da Constituição da República), legislar em matéria processual, seja por meio do regimento interno ou de outras modalidades de atos administrativos e judiciários, como resoluções e instruções normativas.
Mesmo porque, no Estado Democrático de Direito, tendo em vista o princípio da legalidade, ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (art. 5º, inciso II, da Constituição da República).
Reconhece-se que, na esfera cível, o Código de Processo Civil de 2015, com natureza de lei, adotou critério distinto quanto à edição de enunciados de súmulas correspondentes à jurisprudência dominante dos tribunais, ao remeter o tema à “forma estabelecida” e aos “pressupostos fixados no regimento interno” (art. 926, § 1º, do CPC).
No âmbito trabalhista, o rigor para isso passou a ser maior, conforme a atual previsão legal específica, a qual pode até não ser a mais oportuna ou adequada, no plano da crítica ao Direito positivo, mas não necessariamente inconstitucional.
O art. 99 da Constituição da República, por sua vez, dispõe que ao “Poder Judiciário é assegurada autonomia administrativa e financeira”.
A mencionada disposição, apesar de relevante, não diz respeito à uniformização da jurisprudência, mesmo porque trata de tema bem diverso, qual seja, a autonomia do Poder Judiciário nos planos administrativo e financeiro.
Em síntese, não há qualquer preceito constitucional que exclua da lei a competência para estabelecer os requisitos da uniformização da jurisprudência, nem existe qualquer determinação constitucional no sentido de que a edição e a modificação de súmulas e outros enunciados de jurisprudência sejam matérias exclusivas dos regimentos internos.
A correta análise do sistema jurídico, em verdade, revela justamente o contrário, considerando, inclusive, o princípio da legalidade.
O mencionado art. 926, § 1º, do CPC de 2015, como norma legal, na esfera cível, é que faz remissão à forma e aos pressupostos do regimento interno para os tribunais cumprirem o dever de editar enunciados de súmula correspondentes a sua jurisprudência dominante.
No processo do trabalho, entretanto, a norma legal expressa e específica do art. 702, inciso I, alínea f, da CLT determina, diretamente, os requisitos a serem observados, justamente para evitar a aprovação e a alteração de súmulas e outros enunciados de jurisprudência sem o prévio e amplo debate, notadamente sem que a divergência se materialize, primeiramente, perante as instâncias inferiores da Justiça do Trabalho.
A decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.105/DF, por sua vez, especificamente quanto ao art. 7º, inciso IX, da Lei 8.906/1994, que previa o direito do advogado de sustentar oralmente as razões de qualquer recurso ou processo, nas sessões de julgamento, “após o voto do relator”, como parece claro, não tratou da temática em exame, voltada aos requisitos para a edição ou modificação de súmulas e outros enunciados de jurisprudência (matéria processual). Bem diversamente, a decisão da medida cautelar na referida demanda, faz menção a questões relativas à “ordem no julgamento”, ou seja, ao “funcionamento” e à “economia dos tribunais”, nesses casos, de competência do regimento interno[2].
Reconhece-se, entretanto, que a tendência é o Pleno do Tribunal Superior do Trabalho decidir, incidentalmente (art. 97 da Constituição da República), no sentido da inconstitucionalidade dos art. 702, inciso I, alínea f, e §§ 3º e 4º da CLT, incluídos pela Lei 13.467/2017, como já se manifestou a Comissão de Jurisprudência e de Precedentes Normativos, ao opinar, em parecer datado de 22 de fevereiro de 2018, no processo TST-E-RR-696-25.2012.5.050463, no sentido de que seja “declarado o afastamento da sua aplicação no processo de criação e alteração de súmulas e demais enunciados de jurisprudência do TST”.
Ainda assim, não se pode deixar de salientar que o mesmo Pleno do Tribunal Superior do Trabalho, por meio da Resolução Administrativa 1.937, de 20 de novembro de 2017, aprovou o novo texto do Regimento Interno do Tribunal Superior do Trabalho.
Desse modo, conforme o art. 75, inciso VII, do atual Regimento Interno do TST, compete ao Tribunal Pleno “estabelecer ou alterar súmulas e outros enunciados de jurisprudência uniforme, pelo voto de pelo menos 2/3 (dois terços) de seus membros, caso a mesma matéria já tenha sido decidida de forma idêntica por unanimidade em, no mínimo, 2/3 (dois terços) das turmas, em pelo menos 10 (dez) sessões diferentes em cada uma delas, podendo, ainda, por maioria de 2/3 (dois terços) de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de sua publicação no Diário Oficial”.
Reitera-se, assim, a mesma previsão do art. 702, inciso I, alínea f, da CLT, o que acarretará nítida contradição na hipótese de o mesmo Tribunal Pleno, poucos meses depois, decidir pela inconstitucionalidade dessa previsão legal.
Da mesma forma, o art. 125, § 2º, do atual Regimento Interno do TST, reiterando o art. 702, § 3º, da CLT, determina que as “sessões de julgamento sobre estabelecimento ou alteração de súmulas e outros enunciados de jurisprudência deverão ser públicas, divulgadas com, no mínimo, 30 (trinta) dias úteis de antecedência, e deverão possibilitar a sustentação oral pelo Procurador-Geral do Trabalho, pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, pelo Advogado-Geral da União e por confederações sindicais ou entidades de classe de âmbito nacional”.
Ademais, ainda que o Pleno do TST decida pela inconstitucionalidade dos art. 702, inciso I, alínea f, e §§ 3º e 4º da CLT, incluídos pela Lei 13.467/2017, e passe a seguir apenas as regras do Regimento Interno do TST, estas, como demonstrado, estabelecem atualmente no mesmo sentido da lei em vigor.
O disposto no anterior Regimento Interno, a rigor, não teria como ser aplicado, pois foi revogado pela norma regimental mais recente e diversa, na forma do art. 364 do atual Regimento Interno do TST, ao estabelecer a revogação das disposições em contrário.
Ainda que se considerasse que o art. 702 da CLT teria sido tacitamente revogado pela Lei 7.701/1988, e que não caberia à Lei 13.467/2017 acrescentar inciso e parágrafos a esse dispositivo, as previsões contidas nos art. 702, inciso I, alínea f, e §§ 3º e 4º da CLT, apresentam plena compreensão, sentido, alcance, aplicabilidade e validade. A alegação, nesse aspecto, restringe-se ao plano da crítica à técnica legislativa, que não teria sido a mais indicada, mas sem aptidão para invalidar as novas disposições legais.
Por fim, mesmo que o Pleno do TST, como parece provável, decida no sentido da inconstitucionalidade dos art. 702, inciso I, alínea f, e §§ 3º e 4º da CLT, incluídos pela Lei 13.467/2017, a matéria certamente chegará ao Supremo Tribunal Federal, que, espera-se, possa corrigir os rumos da questão.
Cabe, assim, acompanhar os desdobramentos dessa relevante e controvertida matéria, relativa à atividade jurisdicional e à consolidação da jurisprudência.
[1] Cf. GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Reforma trabalhista. 3. ed. Salvador, JusPodivm, 2018.
[2] A ementa da decisão final, na realidade, tem a seguinte redação: “Ação direta de inconstitucionalidade. Art. 7º, IX, da Lei 8.906, de 4 de julho de 1994. Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil. Sustentação oral pelo advogado após o voto do relator. Impossibilidade. Ação direta julgada procedente. I – A sustentação oral pelo advogado, após o voto do Relator, afronta o devido processo legal, além de poder causar tumulto processual, uma vez que o contraditório se estabelece entre as partes. II – Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade do art. 7º, IX, da Lei 8.906, de 4 de julho de 1994” (STF, Pleno, ADI 1.105/DF, Rel. p/ Ac. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 04.06.2010).
Gustavo Filipe Barbosa Garcia
é professor Universitário e livre-docente pela Faculdade de Direito da USP.
Fonte: Genjuridico.com.br
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