terça-feira, 6 de março de 2018

Idiossincrasias da Liquidação dos Pedidos na Petição Inicial

A Lei 13.467/2017, responsável pela Reforma Trabalhista, alterou a redação do § 1.º do art. 840 da CLT, passando a exigir a “indicação do valor” para cada pedido elencado na petição inicial de processo enquadrado no rito ordinário, peculiaridade esta que já marcava o procedimento sumaríssimo (inciso I do art. 852-B da CLT). A referida Lei ainda incluiu o § 3.º no art. 840 da CLT, similar ao § 1.º do art. 852-B da CLT (rito sumaríssimo), estipulando o arquivamento da reclamação, no caso de inobservância da exigência.

Importante lembrar que o juiz do trabalho, ao detectar a iliquidez de um ou mais pedidos, não deve, de imediato, extinguir o processo sem resolução meritória, porquanto o “defeito” não esculpe o rol do art. 330 do CPC, e, por conta disso, o indeferimento da petição inicial, pelo vácuo da indicação do valor do pedido, somente será cabível depois da intimação do advogado do reclamante para que supra a irregularidade no prazo de 15 dias, nos termos da Súmula 263 do TST, a qual  prevê a aplicação supletiva do art. 321 do CPC.

Surge, então, uma pergunta elementar:

A CLT exige a prévia liquidação dos pedidos principais e acessórios ou a indicação de valores que espelhem uma estimativa aproximada da pretensão?

Entendemos que a norma não exige a prévia liquidação dos pedidos, mas apenas que cada pleito esteja acompanhado de um valor a ser arbitrado pelo advogado do reclamante, que jamais poderá ser cravado como definitivo, principalmente pela natural incidência de juros e correção monetária.

Nossa conclusão deságua da simplicidade do processo trabalhista, não se justificando, data maxima venia, a antecipação da liquidação de uma sentença que nem se sabe ainda se terá natureza condenatória. Pensar o contrário é colocar o “carro” na frente do “boi”, e, ao fazer isso, o condutor do “carro” (no nosso caso, o magistrado) estará impondo iníqua e ilógica estagnação ao deslocamento processual, prejudicando o aflito trabalhador, que ali está na busca pela satisfação, muitas vezes, de direitos básicos que exalam o aroma do “pão de cada dia” (natureza alimentar das verbas trabalhistas).

OBSERVEM COM ATENÇÃO.

Ao conferir os cálculos e exigir pureza matemática ao reclamante, o juiz do trabalho estará “instaurando”, ex officio, um incidente maculado de incongruência, uma vez que estancará a natural marcha do processo para buscar um Quantum Debeatur (quantia da dívida) antes mesmo de saber  se o feito gerará um An Debeatur (existência da dívida).

Seria uma espécie de esquizofrenia processual.

Sentimos dizer, mas esse tipo de interpretação não se frutifica da boa hermenêutica jurídica, e, não tememos dizer, conduzirá o intérprete na direção do abismo do absurdo.

A Lei 13.467/2017, apesar de esculpir na CLT a tal exigência de “indicação do valor do pedido”, manteve, em sua natural morada, o incidente de liquidação de sentença, previsto no art. 879 da CLT, valorizando-o, inclusive, ao impor a concessão de prazo de oito dias para a impugnação, pelas partes, da decisão liquidatória, em típica fase pré-executória, pois, naquele momento, o An Debeatur já pulula no decisum.

Ora, se o legislador pretendesse “antecipar” a liquidação para a fase cognitiva, antes, inclusive, da instalação da litiscontestatio, teria fulminado o art. 879 da CLT, ou até mesmo inserido as suas previsões nos capítulos da fase de conhecimento. Não o fez exatamente porque essa não foi a mens legis (finalidade da lei; o espírito do legislador).

Para quem anda desmerecendo os estudos, é bom lembrar que a impugnação ao valor da causa, na legislação processual trabalhista, está prevista apenas no Rito Sumário (o qual, em nossa opinião, foi soterrado pela Lei 9.957/2000), desde que o valor seja fixado pelo juiz do trabalho, quando a petição inicial for omissa, devendo, então, a dita refutação ser arguida nas razões finais – caput e § 1.º do art. 2.º da Lei 5.584/1970 (essa previsão, com a chegada do PJE, tornou-se inócua, já que o sistema exige do advogado a indicação, quando do protocolo da petição inicial, do valor da causa).

Defendemos, particularmente, a aplicação supletiva do CPC, independentemente do rito, quanto à possibilidade de o reclamado apontar a “incorreção do valor da causa” na contestação, à luz do inciso III do art. 337 do CPC, mas não a aferição “ferina” e “matemática” do próprio juiz do trabalho.

A ausência do “despacho saneador” no processo trabalhista sempre foi enaltecida, por imprimir celeridade à demanda, o que torna incompreensível a intimação do advogado do autor para que “corrija” supostos “erros” de cálculo ou que proceda à “liquidação em separado” das repercussões das verbas remuneratórias (individualização do acessório).

Destacamos que a “correção do valor da causa” poderá ser feita de ofício pelo magistrado, à luz do § 3.º do art. 292 do CPC c/c o inciso V do art. 3.º da IN 39/2016 do TST, e, convenhamos, o estágio processual para que isso ocorra é depois de ofertada a contestação (instalação da litiscontestatio).

Ninguém aqui está ignorando o poder de o juiz do trabalho analisar, de ofício ou a requerimento do réu, se o valor da causa corresponde ao conteúdo patrimonial em discussão ou ao proveito econômico perseguido pelo reclamante. O nosso questionamento diz respeito apenas à “ocasião ritual para que isso ocorra”.

O advogado do reclamante não deve anexar qualquer planilha de cálculo à petição inicial, pois, em momento algum, a lei dele exige tal “comprovação”.

O advogado do reclamante deve ignorar qualquer ordem judicial nesse sentido, afinal, como reza o inciso II do art. 5.º da Lei Maior, “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (o princípio da legalidade, no nosso pobre Brasil, anda esquecido). Esse tipo de decisão é “ilegal” e “fere direito líquido e certo” do reclamante, atraindo o furor do remédio heroico (mandado de segurança – Lei 12.016/2009).

As intimações marcadas pelo preciosismo de antecipar a liquidação detalhada e imaculada de uma sentença que ainda nem existe, por sua vez, desafiam correição parcial, resistência instrumental destinada à correção de decisões não impugnáveis por outros remédios e que configurem inversão tumultuária dos atos e da ordem legal do sistema processual.

Há pretensões, inclusive, impossíveis de serem liquidadas, por exemplo, aquela envolvendo equiparação salarial. Como poderá o juiz do trabalho infligir ao reclamante a precisa e inatacável “indicação de valor” das diferenças salariais e sua integração, quando os holerites do ou dos paradigmas estão de posse da parte adversa? Exigirá o juiz do trabalho que o padecido obreiro requeira a tutela antecipada em caráter antecedente para “exibição de documentos” pelo réu, como condição para o processamento da reclamação?

Qual o critério para a liquidação do pedido de pagamento de “adicional de insalubridade”, se o percentual está condicionado à fase instrutória (prova técnica)?

O aplicador do direito deve tatuar no seu coração e na sua mente o art. 1.º do CPC, norma que orienta o intérprete a não abandonar os valores e as normas fundamentais da Constituição Federal, e lembrar que “valores” são “princípios”, já que são atemporais e imunes ao capricho de certos exageros legiferantes, evitando, com isso, a perversa exclusão da apreciação jurisdicional, de ameaça ou lesão a direito por “filigranas aritméticas” obtusas, afastando-se da tentação do protagonismo judicial e, à luz do art. 8.º do CPC, contentar-se simplesmente em aplicar o ordenamento jurídico para atender aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência.

É isso!

Gustavo Cisneiros
Juiz do Trabalho. Professor de Direito do Trabalho e de Direito Processual do Trabalho. Coordenador e professor da pós-graduação em Direito e Processo do Trabalho. Autor de livros jurídicos. Palestrante.

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