quinta-feira, 2 de agosto de 2018

Desconsideração da personalidade jurídica no processo penal

A determinação de medidas constritivas de patrimônio pela Justiça penal está longe de ser uma novidade no ordenamento. Dentre as medidas assecuratórias, o CPP prevê o sequestro “dos bens imóveis, adquiridos pelo indiciado com os proventos da infração, ainda que já tenham sido transferidos a terceiro” – medida autorizada diante da “existência de indícios veementes da proveniência ilícita dos bens” (art. 126). Para esse caso, a lei prevê a oposição de embargos de terceiro (art. 129), sugerindo que, além desse remédio processual (“poderá ainda”), a constrição possa ser impugnada “I - pelo acusado, sob o fundamento de não terem os bens sido adquiridos com os proventos da infração; II - pelo terceiro, a quem houverem os bens sido transferidos a título oneroso, sob o fundamento de tê-los adquirido de boa-fé”. Essa a regra do art. 130, cujo parágrafo único condiciona decisão nos embargos ao trânsito em julgado da sentença; embora seja possível levantar a medida nos casos do art. 131. Além do sequestro de bens imóveis, a lei também autoriza que tal medida recaia sobre móveis, se presentes as condições do art. 126. Havendo condenação, e por se tratar de sequestro, a consequência é a avaliação e venda dos bens, com entrega do produto ao Tesouro, ressalvada parte devida ao lesado ou terceiro de boa-fé (art. 133).

A lei também prevê a constituição de hipoteca sobre imóveis (art. 134), quando se invocar responsabilidade civil do réu, cujo valor deverá ser arbitrado e, diante de condenação, definitivamente liquidado. Subsidiariamente, a lei faculta o arresto de bens móveis (art. 137). Por se tratar de medida ligada à potencial condenação do demandado, se houver absolvição o arresto não subsistirá (art. 141). Inversamente, se houver condenação passada em julgado, os autos serão remetidos ao juízo cível (art. 143). Ademais, o art. 63 do mesmo diploma prevê ainda que, “Transitada em julgado a sentença condenatória, poderão promover-lhe a execução, no juízo cível, para o efeito da reparação do dano, o ofendido, seu representante legal ou seus herdeiros”; isso sem prejuízo da possibilidade de se intentar ação condenatória diretamente perante o juízo civil (art. 64).

Contudo, para além desses casos, há outros nos quais se cogita da responsabilidade patrimonial de empresas com as quais o demandado (penal) possa manter – ou ter mantido – vínculos societários, quer como titular de capital, quer como agente encarregado da administração. Não se tratando de responsabilidade civil decorrente de futura condenação a eventual reparação civil e, portanto, não se estando exatamente no plano do débito, do que se cuida, em alguns casos, é de típica desconsideração inversa da personalidade jurídica: imputa-se o uso de pessoas jurídicas para a prática de ilícito, em figuras que se ajustam à regra do art. 50 do Código Civil, apenas que, como dito, de forma invertida, conforme prevê o art. 133, § 2º do Código de Processo Civil, ao regulamentar o assim chamado incidente de desconsideração inversa da personalidade jurídica.

Em determinadas situações, os membros ou os administradores da pessoa jurídica, exercendo mal as posições jurídicas emergentes da autonomia patrimonial, empregam-nas de maneira disfuncional. Assim, a desconsideração se apresentaria como medida apta a barrar simulações e fraudes. Em última análise, é disso que se cogita quando se determina a apreensão de bens de terceiro com fundamento no art. 4°, da Lei n° 9.613/98.

O grande desafio, nesses casos, é garantir a observância do devido processo legal.

Na esfera civil, o assim chamado incidente de desconsideração da personalidade jurídica foi criado justamente para assegurar que nenhuma invasão da esfera patrimonial ocorra sem a estrita observância do devido processo legal. Como já dissemos, em sede doutrinária, “a ideia central do novo instituto é a de que só se chega à desconsideração após prévio contraditório do terceiro cujo patrimônio se pretende invadir. Visto o tema sob ângulo sistemático, o instituto não deixa de ser desdobramento lógico das normas dos artigos 9º e 10 do novo Diploma (que foram erigidas à condição de “normas fundamentais”): se o que se deseja é alcançar o patrimônio de alguém que não foi parte – ainda que sob o relevante fundamento de conduta fraudulenta –, é coerente com o devido processo legal que, ao menos por regra, seja dada oportunidade de prévia manifestação a tal pessoa” (cf. “Do incidente de desconsideração da personalidade jurídica”, in Comentários ao Novo Código de Processo Civil, coordenação de Antonio do Passo Cabral e Ronaldo Cramer, 2ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2016, pp. 229/242). Aliás, em todos os casos que podem levar a sujeitar bens de terceiros à satisfação de débito de outrem – nos casos de fraude contra credores, fraude de execução, desconsideração da personalidade jurídica e mesmo de alegada sucessão (no plano material) – o sistema abriu igual oportunidade para prévia e adequada cognição, com possibilidade de alegação e prova pelo sujeito cujo patrimônio se pretende impactar.

É certo, que “em casos excepcionais e devidamente justificados, será possível postergar o contraditório do terceiro, mediante a edição de tutela provisória cautelar. Isso porque evidentemente a oitiva prévia que se dá ao terceiro não pode servir de oportunidade para que ele frustre a medida executiva, se e quando deferida. Portanto, excepcionalmente, mediante os requisitos próprios da tutela de urgência (art. 300), poderá ser determinada a apreensão de patrimônio penhorável do terceiro supostamente responsável, antes que decidida a pretensão de desconsideração” (cf. op. cit.). Contudo, de nada adiantaria consagrar o instituto que dá grande importância ao contraditório prévio se, de outra parte, medidas constritivas de urgência, sem prévia oitiva da parte, fossem deferidas com complacência. Por vias oblíquas, estar-se-ia fazendo letra morta da importante inovação que o CPC/15 positivou; e que parece ser aplicável em qualquer caso de extensão de responsabilidade patrimonial. É preciso considerar, ademais, que a fraude não se presume e que, portanto, o ônus da prova é sempre de quem alega sua suposta existência.

Embora tudo isso não seja ignorado da doutrina processualista penal, o assunto merece ser revisitado diante da evolução experimentada em matéria processual civil. É o convite que se faz aqui.

FLÁVIO LUIZ YARSHELL
Advogado. Professor Titular do Departamento de Direito Processual da Faculdade de Direito da Universidade São Paulo.

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