quinta-feira, 4 de abril de 2019

As novas tecnologias e as dificuldades de sua implantação

A interoperabilidade dos sistemas é, com efeito, um valor a ser necessariamente preservado, já que os investimentos em programas de processamento eletrônico, máxime num tribunal da envergadura e da grandeza do TJ/SP, são verdadeiramente astronômicos, ultrapassando, como se sabe, a casa dos bilhões de reais.

Em oportuno editorial do jornal "O Estado de São Paulo", publicado no último dia 19/3, p. A3, intitulado "O embate entre o CNJ e o TJ/SP", foram tecidas importantes considerações sobre os avanços e os retrocessos da Justiça brasileira - e, em particular, da Justiça paulista -, relativamente à recente contratação da empresa Microsoft pelo TJ/SP.

A despeito da solar clareza das explicações do seu presidente, desembargador Manoel de Queiroz Pereira Calças – que, nesse mesmo dia, escreveu o artigo "Transformação digital e o Judiciário", pormenorizando as várias razões técnicas, operacionais e econômicas pelas quais aquele tribunal resolveu migrar seus sistemas de informática para o desenvolvimento de nova plataforma de Justiça digital baseada na computação em nuvem –, o CNJ manteve a decisão monocrática liminar de um dos seus conselheiros no sentido da suspensão do contrato celebrado com a Microsoft.

O editorialista concluiu sua cuidadosa análise, afirmando: "O que parece ter prevalecido nesse julgamento não foram argumentos técnicos, mas animosidades corporativas. Essa é mais uma demonstração das dificuldades que a Justiça – especialmente a paulista – enfrenta para se modernizar."

Sem a menor condição de me manifestar sobre eventuais animosidades corporativas – seja por mera questão de recato intelectual, seja por acreditar que, a partir dos esclarecimentos já prestados pelo TJ/SP, não mais subsistirão dificuldades, quando vier a ser proferida a decisão de mérito a respeito da matéria - proponho-me apenas, neste curto espaço, tecer breves considerações sobre alguns aspectos da questão tecnológica dos tribunais brasileiros, deixando de lado aqueles que já foram exaustivamente tratados, quer pelo presidente do TJ/SP, quer por dois dos meus colegas da faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, eminentes administrativistas, professores titulares Floriano de Azevedo Marques Neto e Fernando Dias Menezes de Almeida, o primeiro sendo o atual diretor da casa, todos eles no sentido da plena regularidade da contratação de que se cuida.

Um desses aspectos, para mim, é a questão da propriedade ou cessão do código-fonte. Foi dito pelo presidente do TJ o seguinte: "Impus, ainda, como condição dessa solução que o código-fonte se tornasse de propriedade do TJ/SP, para eliminar sua posição negocial vulnerável, e, logicamente, tendo como premissa a interoperabilidade dos sistemas." Nada mais acertado.

A interoperabilidade dos sistemas é, com efeito, um valor a ser necessariamente preservado, já que os investimentos em programas de processamento eletrônico, máxime num tribunal da envergadura e da grandeza do TJ/SP, são verdadeiramente astronômicos, ultrapassando, como se sabe, a casa dos bilhões de reais.

O mesmo deve ser dito em relação ao código-fonte, outro valor absolutamente fundamental. Sabe-se que tal como "o ovo está para a galinha", "o embrião está para o ser humano", "a fórmula para o remédio", o código-fonte está para o programa de computador. Ou, se se preferir, em outras palavras, assim como o átomo está para o mundo físico e o bit está para o virtual, pode-se dizer que o código-fonte é a sequência predisposta dos bits que irão determinar a própria função do programa. Para Xavier Ribas (Protección jurídica de los Programas de Ordenador, Institute for International Research España S.A., Madrid, 1995), o "código-fonte é o núcleo formal do programa e constitui a primeira expressão independente do processo de criação, que alcança uma proteção direta do direito de autor". Não se concebe que um código-fonte, pela relevância de que se reveste, fique apenas nas mãos de uma empresa cedente de um programa de computador. Tanto assim que a prática estadunidense levou à criação de uma espécie de agente fiduciário para ser o depositário do código-fonte, nas hipóteses de mudança de objeto social ou de quebra da empresa cedente (contrato de escrow).

Ao observar o que sucede agora com a dificuldade de o TJ/SP avançar no desenvolvimento de uma nova plataforma digital, vem-me naturalmente à mente a passagem do prof. Fábio Konder Comparato, que vivo a repetir aos meus alunos, quando ele afirmava, na década de setenta da centúria passada, que a "tradição misoneísta dos nossos jurisconsultos" sempre optou por "condenar às trevas exteriores toda e qualquer manifestação jurídica que não se enquadre no seu sistema." (in O Indispensável Direito Econômico, originalmente publicado na RT 353/14, e posteriormente republicado in Ensaios e Pareceres de Direito Empresarial, Forense, Rio, 1978, pp. 453 e ss.)

Sei muito bem o que passei quando me esforcei para trazer ao Brasil, no século passado, as experiências do direito comparado, consubstanciadas especialmente na França (Lettre de Change-Relevé) e na Alemanha (Lastschriftverkehr), em matéria de meios de pagamento emitidos pela computação eletrônica. Foi necessário o longo transcurso de algumas décadas para que a nossa duplicata escritural pudesse ser devidamente reconhecida como um título de crédito, o que me fez entender o sentido e o alcance da distinção feita por San Tiago Dantas, entre "juristas de vanguarda" e "juristas de retaguarda". O desembargador Pereira Calças, presidente do TJ/SP, está entre os primeiros, sem a menor sombra de dúvida. Mas são eles que mais sofrem pela suprema ousadia de enxergarem adiante do seu tempo...

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por Newton De Lucca é professor titular de Direito Comercial da USP.

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